“Andreas é o título de um romance inacabado de Hofmannsthal (1907-1929). Nessa referência, o presente trabalho é, ainda, exemplo da permanente relação que o artista realiza entre os complexos níveis de realidade cultural em que se move e em que sucessivamente nos coloca: a erudição e o quotidiano, a dimensão lírica e a política, a científica e a filosófica, as linguagens visuais e as literárias.
Tomando o livro como ponto de apoio para uma reflexão sobre o destino cultural ocidental que vem de há muito (série Hotéis, 1991), Valente Alves desenvolve o seu trabalho em várias direcções: dois painéis de fotografias, um DVD, um livro, uma exposição onde se integram obras do próprio Museu Nacional de Arte Antiga e um texto de João Miguel Fernandes Jorge, que, como sempre, é capaz de caminhar pela opacidade das palavras e imagens, de as ir iluminando, redefinindo e multiplicando os seus sentidos.
Por escolha solicitada ao director do Museu (José Luís Porfírio), apresenta-se numa das paredes da grande sala, três imagens em ruínas (duas pinturas religiosas irrecuperáveis e um exercício de desenho arquitectónico sem valor estético próprio). Fronteira, vemos uma Ascensão de Domingos Sequeira (início do século XIX). Esta escolha-confronto é uma muito inteligente leitura do sentido de “Andreas”, (anti?-)herói dividido entre a real dissolução moral e física e o desejo de elevação espiritual. E também um perfeito comentário ao comentário que os painéis fotográficos e o vídeo em si já continham. Nas fotos (100 em cada uma das paredes restantes), organizadas em grelha sobre fundos diversos, um branco e outro preto, vemos imagens de uma natureza humana, construída e em construção (ou desmanchada e em desconstrução?) e imagens da natureza vegetal e animal, lugar para onde se olha como se tudo existisse (as flores, a caça, o verde, a vida) par além de qualquer crise. O DVD revela-se a partir da porta que conduz ao auditório e conduz-nos a um discurso de imagens de todos os lugares possíveis e a situações cuja lógica de encadeamento intuitivo gera um permanente movimento de instabilidade, de alegria, de dissolução...
O livro, esse, tem um história de construção em risco permanente. Situa-nos na fronteira do século XX, data em que a condição moderna do homem errante já domina. Hofmannsthal desejou um ‘romance de construção’ (à imagem da lição de Goethe), mas nunca o concluiu. Foi como se a personagem principal (e todas as outras) fugisse a qualquer possibilidade de elevação espiritual; como se, em permanente risco de dissolução, o desenrolar autónomo da sua história impedisse a concretização da cadeia alquímica (“solve et coagula, conjunctio, purificatio”...) necessária à concretização do projecto de clássica do humano e/ou da conclusão da própria obra artística.”
João Lima Pinharanda, “A continuação do fim”, Jornal Público, 15 de Fevereiro de 2003