"As subtis mudanças deste trabalho são mudanças radicais: perde-se a estabilização da linha do horizonte; cruza-se a especificidade da luz na fotografia com a tradição dos registos atmosféricos na pintura; a palavra integra a imagem não como legenda ou ilustração, mas como direcção interpretativa; a temática sugerida (o espaço e o tempo em que é inscrita) arrisca a capacidade de convocar, na obra de arte contemporânea, a dimensão do mito e do absoluto.
Dois meses depois de uma importante mostra no Centro de Arte Moderna (CAM), em Lisboa, Valente Alves apresenta imagens de base fotográfica que se podem considerar como feliz aprofundamento do anterior trabalho – radicalizando as suas opções conceptuais e visuais, o autor parece atingir o estatuto da maturidade, sem se deixar enredar nas armadilhas do esteticismo nem da discursividade.
O pretexto foi uma narrativa de Crista Wolf onde, a propósito da queda de Tróia e do estatuto social e psicológico da mulher, a análise dos elementos constitutivos da história de um corpo (e de uma alma) que caminha para a morte (que já lá está) é conduzida através da determinação de personagens chave e das suas relações com a protagonista. Valente Alves isolou, nessa constelação de personagens trágicos, os nomes de alguns homens: Príamo, Aquiles, Eneias, Páris, por exemplo. Não se trata de ilustrar um livro, mas de questionar a ponderabilidade desses nomes do mito, de os recolocar no sistema de valores que, como referente, funda a literatura ocidental.
Sabendo como o olhar funciona, na leitura de um texto, percebemos que somos levados a ler os nomes dos personagens, antes de vermos o céu que aleatoriamente lhes corresponde; aumentando o espaço entre a palavra inscrita e a foto colada, Valente Alves obriga à vertigem dessa "descida ao céu" e reforça a diversidade de estatuto dos dois elementos da imagem. A explicitação da diferença que já encontrávamos na realização manual (imperfeita) e posterior à impressão final das letras sobre o papel fotográfico é acentuada pela solução da "colagem”: a foto é colada sobre o suporte onde a palavra é escrita.
Os céus indeterminam o lugar e a altura da observação: pode ser hoje, amanhã ou ter sido há 25 séculos; pode ser aqui, nos antípodas ou no Egeu. A perda do horizonte e outros elementos de localização determinam a perda de propriedade (identificação e intransmissibilidade da imagem), a indeterminação da imagem (a similaridade de todos os céus) leva à sua universalização: o individual (o irrepetível) é transformado, através do irrelevante (os céus nublados todos similares) não apenas em absoluto fotográfico (como diz Rosalind Krauss referindo- -se a Stieglitz), mas em absoluto cultural.
Trata-se de garantir, através das imagens (céus/nomes), o que pretende Christa Wolf: visibilidade para os que não vencem, para os fracos, para os que correm "ao lado do grande rio das canções heróicas" (p. 103). Porque, como refere Cassandra na narrativa que a leva "para a morte" (p. 7): “A coisa derradeira será uma imagem nunca uma palavra. Antes das imagens morrem as palavras.” (p. 30) Wolf, Christa - Cassandra, Ed. Cotovia, Lisboa, 1991. Trad. João Barrento."
João Lima Pinharanda, “Na mudança de luz parece que se mexem”, Jornal Público, 8 de Maio de 1992