[Manuel Valente Alves, “Andreas”, 2003]

O DESPOJO E A IMAGEM por José Luís Porfírio

Uma proposta inicial de Manuel Valente Alves, com a inicial cumplicidade de João Miguel Fernandes Jorge, imaginou uma exposição de desenhos a partir do romance (inacabado) do escritor austríaco Hugo von Hofmannsthal Andreas (1907-1929), completada com obras das reservas do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, escolhidas pelos dois artistas.

O tempo trabalhou esta proposta e modificou-a profundamente. Andreas permanece como pretexto imaginário para a intervenção que se processa, no que a obra plástica diz respeito na sala, dita dos Passos Perdidos, do Museu, como uma soma de intervenções que se acrescentam e se comentam pela seguinte ordem:

1º dois grandes painéis fotográficos com imagens fragmentadas da autoria de Manuel Valente Alves.

2º dois outros painéis, com obras escolhidas pelo Museu que se acrescentam quer às sugestões da leitura do “Andreas” quer às imagens de Manuel Valente Alves.

3º um texto de João Miguel Fernandes Jorge a partir das propostas de Manuel Valente Alves e do Museu

4º um vídeo final de Manuel Valente Alves apresentado na sala de conferências fecha o ciclo expositivo.

No seu conjunto temos, um escrito como pretexto, um artista trabalhando imagens, o Museu reagindo a um e outro e propondo obras suas e justificando-o em texto de catálogo, um poeta somando os seus dizeres, de novo o artista trabalhando a imagem no ritmo especial do vídeo, e ainda um catálogo e um DVD vídeo formam mais do que uma exposição um processo de trabalho e de transformação que entra no Museu, aqui pára e acaba por sair acrescentado em experiência.

“Andreas” é um romance que se faz e se desfaz, longo projecto que o seu autor nunca conseguiu, ou pôde, ou quis, completar; romance de formação que perde forma e ganha sentido quando o protagonista mergulha nos fragmentos de uma cidade em processo de dissolução: Veneza!

Daí por certo a metáfora alquímica Solve et Coagula que Manuel Valente Alves escolheu e que foi bem traduzida na ambiguidade de dois muros de imagens que concebeu:

- um aberto na cor e também na forma ao correr das águas mutantes, ao fluir das coisas e do tempo;

- o outro fechado numa cinzentura que lemos quase de imediato como ruína, muito embora o que esteja escondido por detrás das imagens seja um construir e não um des/fazer.

Respondendo aos dois muros de imagens escolhemos, para as paredes que sobram na sala duas ordens opostas de objectos que apontam claramente um contraste entre

decadência e plenitude

ou

morte e vida

ou ainda

separação e conjunção para retomarmos a sugestão alquímica de Manuel Valente Alves.

Descemos primeiro ao Inferno menos conhecido de um Museu que não passa como nas bibliotecas por obras “proibidas” ou “indecentes” mas que é constituído por obras perdidas, irrecuperáveis, doentes, finais, terminais se quisermos, obras que só vivem ainda para testemunhar a própria morte, mais obscenas que a obscenidade em certos casos, ou irrisoriamente visíveis, como acontece num capitel compósito aqui representado que sustenta ainda a memória das obras clássicas.

Frente a estas obras propomos a verticalidade da “Ascensão de Cristo” (1829-32) desenho final de Domingos Sequeira, que se eleva nos ares contra as leis da natureza, vibração especial do espaço num desenho num momento de particular intensidade na obra do artista exilado em Roma.

O capitel compósito, na sua patente ruína fica comparado com a totalidade assumida num único movimento ascensional que, momentaneamente, unifica o espaço e o tempo, dando à história um novo significado num sentir que o pintor comunica com excepcional eficácia.

Assim entre o despojo e a imagem (entre o Inferno e o Céu dir-se-ia) o Museu procura corresponder, através das suas obras, ao desafio que lhe foi proposto.

[PORFÍRIO, José Luís, “O despojo e a imagem”, in VALENTE ALVES, Manuel, FERNANDES JORGE, João Miguel, Andreas, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga/MVA Invent, 2003]