Declinações de FAUSTO
No princípio era o mito, a lenda alemã que conta o pacto que o Dr. Johannes G. Faust (1480-1540) teria feito com o demónio. O Dr. Faust era um alquimista, um mago, um astrólogo, um profeta desiludido com os limites do conhecimento escolástico da época. Em troca da sua alma, recebe a energia intelectual que precisa para acreditar na ciência, na técnica, no progresso e também na eternidade.
A literatura tratou de glosar esta narrativa em várias obras publicadas. Mas é a obra “Fausto, uma tragédia” de Goethe publicada em 1808 (parte 1) que é marcante. E se nesta primeira parte domina a insatisfação do conhecimento que tem do mundo, na segunda, (publicada postumamente em 1832), as grandes questões são o prazer e o poder. Em ambas, estão presentes os eixos dominantes da existência humana.
A produção criativa e literária da personagem prosseguiu com as obras de Puchkin, Grabbe, Paul Valéry (Mon Faust), Fernando Pessoa (Fausto: uma tragédia subjectiva), Thomas Mann (Doktor Faustus), Rafael Dionísio, Edgar Brau e António Vieira (com o romance Doutor Fausto 1991).
Na música, a figura de Fausto marca as obras de Wagner, Berlioz, Schumann, Liszt e Gounod. No teatro, Bob Wilson encena Faust I e II. Mas é o cinema, o filme de Murnau (1926), que é convocado por Manuel Valente Alves na obra que apresenta no MIRA FORUM.
FAUSTO, o mistério do mundo
Neste vídeo, o artista traz Fausto para a sociedade contemporânea na que será a primeira proposta de abordagem ao mito neste suporte. Afinal, as questões que se colocam aplicam-se ao mundo contemporâneo: insatisfação, inquietação permanentes numa vida que é curta. A vontade de tudo querer saber e dominar depara-se com a inerente impossibilidade. Mas a dificuldade em aceitar os seus limites leva os humanos a considerar que o crescimento contínuo é possível e, assim, explora os recursos do mundo transformando a natureza ao ponto de a destruir e pôr em causa a própria existência.
No vídeo de Manuel Valente Alves, as imagens do filme de Murnau alternam com projeções disformes de vídeos publicitários de um centro de uma grande metrópole. São sequências alucinantes em que adivinhamos marcas associadas ao consumo e à especulação. Essa alternância, essa associação torna manifesta a reflexão do mito fáustico: a insatisfação permanente, o desejo de ultrapassar limites, a angústia da consciência da finitude, a voracidade do tempo, a vertigem de tudo querer conhecer e ter.
Manuel Valente Alves mostra os arranha-céus com janelas cegas para de seguida conduzir o olhar para o chão a observar um caracol, talvez a lembrar a necessidade de lentificar e recolher à concha, e um escaravelho que, em movimentos compassados, procura evitar (ou procurar?) a brecha, a fenda.
Citando o fogo e o fumo do Fausto de Murnau, o vídeo termina em fumo de fogo a inquietar, a interrogar.
Qual é o nosso inferno?
Qual é a nossa condenação?
Somos Fausto(?)
Manuela Matos Monteiro, “Declinações de FAUSTO”, in: Desdobrável da exposição FAUSTO: o mistério do mundo, MIRA FORUM, Porto, 2022