[Manuel Valente Alves, “Andreas”, 2003]

A CONTINUAÇÃO DO FIM por João Lima Pinharanda

Pensar o fim, ou os caminhos do fim, as estratégias de ruína de um tempo civilizacional é um dos núcleos sobre os quais assenta o trabalho de Valente Alves. Mas porque o fim anunciado sempre se adia na continuidade histórica do Ocidente, podemos falar de um outro núcleo complementar: um caminho de construção permanente. Assim, a sua obra, entre a ruína (percebida como indício, usada como matéria-prima de reflexão) e a construção, conduz-nos sempre a uma linha de energia positiva.

O presente conjunto prossegue uma linha definida em “Hotel Europa” (que é também o seu primeiro vídeo, 1998), registo sintético e sem “inserts” exógenos de uma viagem de comboio pelo coração da Europa, entre Viena e Praga.

É através da viagem (atravessamento de espaços, fixação retiniana dos corpos que os ocupam e recomposição sintética, através da montagem de imagens e sons, dessas realidades dispersas) que a sua obra melhor se entende: cada imagem é a de um lugar, objecto, protagonista cujos funcionamentos são concretos mas também simbólicos, reconhecíveis mas também metafóricos.

Desse modo, cada um dos registos se dá a entender como uma prova iniciática. Porém, e é nesse particular que Valente Alves afirma o drama existencial da sua condição de homem contemporâneo, esses cadernos de viagem (onde os dados, vindos cada vez de mais e mais dispersas fontes, se associam por impulsos de intuição visual, cinética, cromática…), não o/nos conduz explicitamente para uma possibilidade de elevação, de purificação.

Dúvida, apaziguamento, hesitação, energia, angústia, caos são sentidos/sentimentos que Valente Alves, em cada novo projecto, organiza em sistemas que buscam criar uma coerência interna na multiplicidade de suportes por onde se distribuem (fotografias, vídeos/DVD, livros).

“Andreas” é o título de um romance inacabado de Hofmannsthal (1907-29). Nessa referência, o presente trabalho é, ainda, exemplo da permanente relação que o artista realiza entre os complexos níveis de realidade cultural em que se move e em que sucessivamente nos coloca: a erudição e o quotidiano, a dimensão lírica e a política, a científica e a filosófica, as linguagens visuais e as literárias.

Tomando o livro como ponto de apoio para uma reflexão sobre o destino cultural ocidental que vem de há muito (série “Hotéis”, 1991), Valente Alves desenvolve o seu trabalho em várias direcções: dois painéis de fotografias, um DVD, um livro, uma exposição onde se integram obras do próprio Museu Nacional de Arte Antiga e um texto de João Miguel Fernandes Jorge, que, como sempre, é capaz de caminhar pela opacidade das palavras e imagens, de as ir iluminando, redefinindo e multiplicando os seus sentidos.

Por escolha solicitada ao director do Museu (José Luís Porfírio), apresenta-se numa das paredes da grande sala, três imagens em ruínas (duas pinturas religiosas irrecuperáveis e um exercício de desenho arquitectónico sem valor estético próprio). Fronteira, vemos uma “Ascensão” de Domingos Sequeira (início do século XIX). Esta escolha-confronto é uma muito inteligente leitura do sentido de “Andreas”, (anti?-)herói dividido entre a real dissolução moral e física e o desejo de elevação espiritual. E também um perfeito comentário ao comentário que os painéis fotográficos e o vídeo em si já continham. Nas fotos (100 em cada uma das paredes restantes), organizadas em grelha sobre fundos diversos, um branco e outro preto, vemos imagens de uma natureza humana, construída e em construção (ou desmanchada e em desconstrução?) e imagens da natureza vegetal e animal, lugar para onde se olha como se tudo existisse (as flores, a caça, o verde, a vida) para além de qualquer crise. O DVD revela-se a partir da porta que conduz ao auditório e conduz-nos a um discurso de imagens de todos os lugares possíveis e a situações cuja lógica de encadeamento intuitivo gera um permanente movimento de instabilidade, de alegria, de dissolução…

O livro, esse, tem um história de construção em risco permanente. Situa-nos na fronteira do século XX, data em que a condição moderna do homem errante já domina. Hofmannsthal desejou um “romance de construção” (à imagem da lição de Goethe), mas nunca o concluiu. Foi como se a personagem principal (e todas as outras) fugisse a qualquer possibilidade de elevação espiritual; como se, em permanente risco de dissolução, o desenrolar autónomo da sua história impedisse a concretização da cadeia alquímica (“solve et coagula, conjunctio, purificatio”…) necessária à concretização do projecto de construção clássica do humano e/ou da conclusão da própria obra artística.

[PINHARANDA, João Lima, “A continuação do fim”, Jornal Público, 15 de Fevereiro de 2003]