"Manuel Valente Alves coloca as suas fotografias, ligando-as entre si, numa instalação iluminada por Marcel Proust. Através de Proust recoloca uma questão radical: o que pode ser ‘salvo’ quando tudo pode ser fixado? Mais ainda, a haver arte numa época da contingência total, ela está em jogo na tensão entre o registo total, a memória absoluta, e o gesto em que a obra surge.
A situação é grave porque as obras que fazemos compartilham do mesmo destino. De facto, se qualquer associação ou junção abole o acaso, apresentando-se como ‘obra’, o acaso acaba por absorvê-la. Na actual situação todas as ‘obras’ são de imediato submersas pelo acaso, circulando arbitrariamente, ao sabor das instalações, das críticas, dos museus, ou no vazio ao lado de tudo isto. [...]
O problema proustiano por excelência está em recusar a memória total, o registo de tudo. A patologia do acaso seria abolida ao ‘reter-se’ tudo. De facto, a memória total só pode ser a máquina. Uma máquina que fotografe sozinha é o bom exemplo disso, e é o que há mais. O mundo está a ser videografado, filmado, digitalizado. Cada máquina já tem um ‘framing’ incluído. Seria possível fotografar ‘tudo’, o movimento, incluído. É o cinemático que alimenta as máquinas, sobretudo as que visam a ‘animação’ da vida. Eis a vantagem absoluta das máquinas, mas também a sua debilidade de raiz. O que fazer da sua capacidade de ‘fixação’? Claude Simon disse algures: ‘Nenhum espírito humano pode guardar na memória aquilo que o olhar abraça durante umas dessas incessantes fracções de segundo que o tempo faz suceder a uma velocidade vertiginosa’. A vantagem da fotografia ‘é a de fixar, de memorizar aquilo que a nossa memória é incapaz de reter, ou seja, a imagem de algo que só teve lugar ou existiu numa fracção ínfima de tempo’. Mas a fixação de tudo equivaleria a ‘congelar’ o ‘real’. Ora, o humano é uma fixação que perde ou rarifica, salvando ‘tudo’, de outra maneira que não a técnica.
É isto mesmo que a faz da fotografia uma experiência verdadeiramente reveladora, contrariamente às outras artes. Estas últimas sempre trabalharam o simulacro, enquanto a fotografia trabalha a matéria (que todo o simulacro oculta). Uma frase esclarecedora de Pasternak: ‘Ninguém faz a história, não se pode vê-la, tal como se consegue ver a erva a crescer’. [...]
A lição de Proust, aduzida por Valente Alves, é essencial deste ponto de vista. Afinal de contas, Le temps retrouvé é sinal de que a escrita de Proust se tornou finalmente possível, que se tornou em 'quantidade enfeitiçada'. Era tudo o que ele desejava, essa é toda a sua ‘felicidade’. Nem ‘tempo reencontrado’, nem ‘procura do tempo perdido’, antes, como bem viu Nathalie Sarraute, procura do ‘tempo futuro’. Trata-se de abrir o presente, de inventar o tempo.
Quando Goethe diz ‘detém-te, belo instante’, diz a metade da ‘arte’, o parar e fixar, que anula o tempo, mas falta a outra metade. A ‘invenção do tempo’ no próprio momento em que este se anula. Em que este se cola à vida, se enrosca nela."
José A. Bragança de Miranda, “A Arte do Acaso”, in catálogo da exposição “Le Temps Retrouvé”, Galeria Luís Serpa, Lisboa, Junho de 2001