[Manuel Valente Alves, “Andreas”, 2003]

UM CAMINHO PARA A RUÍNA por João Miguel Fernandes Jorge

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Um caminho para a ruína fala-nos de uma oscilação entre o sentido de um valor dominante e a crueza da sua desagregação. Coisas — se acaso for válido chamarmo-lhes coisas — como o amor, a honra, a guerra ou a paz, que são ordens de razão e sentimento e chegam até àquele que os sofre de um modo visionário, para de seguida se perderem ou diluírem na desistência do sujeito. Oscilam entre a realidade e o sonho, coisas — de novo e ainda — que se deslocam e vivem entre o transitório e o intemporal, entre a vida e a morte.

Um universo carregado de dicotomia, semelhante ao que podemos encontrar na novela Andréas de Hugo von Hofmannsthal e que terá estado no início de todo este trabalho de Manuel Valente Alves. Fotografia, vídeo e a presença de obras do Museu Nacional de Arte Antiga, para o qual, de resto o projecto foi concebido, fazem parte de uma instalação que traz consigo acentuado carácter finissecular — não aquele que todos nós estamos a viver na passagem do século XX para o XXI, mas o que o antecedeu, no deslizar temporal do século XIX para o XX.

O clima de Andréas é exactamente esse: o de quem fez parte do elevar de um edifício civilizacioanal, no qual sempre supôs ocupar um lugar ao centro, num quarto tranquilo, entre paredes comportamentais tomadas como paradigma. Mas as variantes foram surgindo, inesperadas e a coberto de uma urgente capacidade de resposta, que o personagem Andréas não soube nunca elaborar. De certo modo, preparado para viver e sofrer um modelo que à sua volta se desmoronava, ele próprio, Andréas foi-se transformando no modelo, no paradigma novo, o do seu próprio tempo. Andréas foi erguido de um modo semelhante à personagem central do libreto que Hofmannsthal escreveu para a ópera de Richard Strauss, A Mulher Sem Sombra.

Também ele, a seu modo, foi um homem sem sombra. Alguém que procurou o mundo no mundo com os elementos de pesquisa — a um tempo valores éticos e estéticos — que conhecia e julgava dominar e não os encontrou já como actuantes. Pelo contrário tudo o que a seus olhos foi valoração se desfez ao ser nomeado e ao ser invocado como intérprete e feitor de uma realidade. Valores, hábitos, crenças já não encontravam correspondência na circunstância «mundo»; e a cada instante se mostravam incapazes de «pensar» as coisas que surgem com imediatismo diante do olhar de Andréas.

O mundo que lhe estava a ser oferecido, o seu mundo contemporâneo surgia como um objecto escondido e as ferramentas teóricas que estavam ao seu alcance não sabiam como desvelá-lo. Agarrar as dificuldades com profundidade era o difícil e no tempo vivido por Andréas, quer psicológico quer físico, um impossível. De onde, o deslizante sentimento de ruína e de uma incapacidade de passar, em limite, de um pensamento alquímico (e Valente Alves valoriza-o como etapa de trabalho) a um exacto saber de ciência.

A necessidade de uma passagem a novos modelos de pensar é o «jogo» narrativo que envolve a novela de Hofmannsthal. Essa exigência situa-se além, muito para lá da fronteira em que se move Andréas. Que se limita a prolongar no seu comportamento a dolência que lhe foi contemporânea. As suas ambições, que as terá tido à semelhança de qualquer personagem intérprete de um exacto tempo, diluíram-se em si mesmo. Dentro de si, tudo o que se dirigia para uma construção do que pudesse ser único, idêntico e necessário desfez-se, perdeu-se, mas não soube dar qualquer existência a possibilidades alternativas.

Coisas bem práticas como a contenção de despesas, que se traduzem na procura de um emprego — e Andréas teria sido um excelente bibliotecário ou conservador de museu, sempre capaz de oferecer um olhar salvífico a um infólio em vias de se perder ou a uma pintura que para a maioria dos observadores não passaria da ruína de uma cor ou da sombra húmida de uma mancha — ou, ainda, na anulação de uma viagem ou na recusa em substituir o vestuário do inverno passado.

Este sentido do útil faltou-lhe. De longe, a sua pátria vinha usando a diplomacia no lugar da guerra. Mas os diplomatas não souberam abdicar a tempo de uma carruagem nova ou de renovar a decoração das salas nas legações que representavam a Áustria. Tudo se identificava, por demais, com o personagem Andréas. Por isso, a paz não foi suficiente para chegar de um modo pleno ao agir de um pensamento. Uma arma nova ou pão fresco eram o suficiente para manter o Império. Mas o Império e Andréas queriam o necessário, isto é, aquilo a que o seu compatriota Wittgenstein viria a chamar, num apelo à entrada do declínio (e como quem olha para um passado centrado no Antigo Regime e resultado, ainda, do exercício de uma herança medieva e escolástica): visão sub specie aeternitatis.

2

O sonho de Andréas foi um sonho de ruínas. Não de imediata derrocada de coisas físicas, como o são as casas e as praças das suas cidades: Viena e Veneza. Mas de ruínas que se situam no deserto de uma igreja vazia ou de uma praça que ninguém atravessa.

«Entrou na igreja; ninguém. Regressou à praça, encontrou-se sobre a ponte, examinou as casas e não viu ninguém. Distanciou-se, percorreu várias ruas, voltou mais uma vez à praça, reentrou na igreja por uma porta lateral, passou de novo sob o arcobotante... ninguém.» É o último parágrafo da novela. Termina de um modo particularmente íntimo; espécie de deserto no próprio coração do personagem. Ruína vagarosa. Semelhante à lenta agonia da monarquia dual da Casa dos Habsburgo, bem menos espectacular que a da vizinha Alemanha de Guilherme II. Reflecte este final uma temática do fugaz e do eterno. Fugaz: as casas, a praça, a ponte, uma e outra rua, a igreja. Eterno: uma única palavra: ninguém. E «ninguém» reflecte, a um tempo, o heróico, o idílico e o destino humano. «Ninguém» guarda consigo, por entre uma cidade e um império deserto, a vivíssima noção de que «a vida é um sonho».

A Andréas, sem muito esforço, vêmo-lo sair do café Griensteidl. Dá o braço ao seu criador, Hugo von Hofmannsthal e a Stefan Zweig. Fazem parte dos Jung Wien. Surgiram numa sociedade que pensava ser coisa muito natural centrar a vida no teatro. O palco configurava o seu vestuário, grande parte das suas vidas e dos assuntos de conversa. Numa sociedade patriarcal, como era a vienense, a noção da «arte pela arte» a que os Jung Wien se entregavam, escandalizava o mundo para quem os «negócios são os negócios». Andréas é criado à medida de um esteta. Ele próprio pretende ser entendido como um veículo artístico que, em si, pudesse combinar todas as artes (poesia, música, teatro), numa unidade que produzisse um efeito idêntico ao que se encontra no teatro antigo.

Enquanto personagem, no perpassar da novela, vê-mo-lo, lentamente, palavra a palavra, com uma mansidão de vencido, assumir o sentido de uma catarsis. Essa característica de consabida desistência não apresenta nenhuma das grandes virtudes alemãs encenadas por Wagner, na continuidade (purificadora) dos mitos nórdicos, pois Andréas cumpre, antes, a imitação de destino e de fuga (ruinosa e também) trágica que encontramos nos libretos que Hofmannsthal escreveu para as óperas de Richard Strauss.

Não só Na Mulher Sem Sombra ou No Cavaleiro da Rosa, mas igualmente nas adaptações que Hofmannsthal fez da tragédia grega, com Electra, Alceste, Ariana em Naxos e Rei Édipo, todas musicadas por Strauss, está presente um processo contemplativo — o deambular de Andréas nas ruas e praça e igreja vazias e o seu olhar para as casas que igualmente se lhe mostravam vazias, indicam-no na novela — , introdutor de um agape cristão. Este novo elemento, em relação à tragédia grega, introduz no desastroso egoísmo do indivíduo, a noção de que quem o acompanha não só no final da acção, como no registo de todo o seu desenvolvimento, terá sido «ninguém». Uma ilusão rompante que, ao ser enunciada, traz consigo o realismo de querer intervir numa sociedade enferma, como o era a do final do Império austro-húngaro.

3

A estética tradicional fazia provavelmente da beleza uma ideia mais justa do que a nossa. O século XX terá começado sob a toada musical de Franz Lehár, com os seus Viúva Alegre e O Conde do Luxemburgo, mas depressa evoluiu para um latente sentido estético que, ao ser enunciado por Karl Krauss (Werke, vol.3), sustentava uma divisão entre arte moral e arte imoral. Esta última era a negação da arte e trazia consigo um grau idêntico a uma «verdade feia» — a falsidade. A arte que conteria uma verdade «verdadeira» e que partiria de uma forma acutilante desde o seu criador até ao seu público seria aquela que Richard Strauss, Arnold Schönberg, Alban Berg, Georg Trakl, Wedekind erguiam, entre a natureza do homem e os limites da sua própria linguagem. E que se prendia à sua imediata expressão e comunição.

Eles foram acompanhados ou seguidos por uma numerosa lista de criadores que praticavam, ou o viriam ainda a fazer, esse modo de intensidade entre a herança barroca dos Habsburgo e o desespero conduzido pelo irracional da existência que dominaria todo o norte europeu. Como pontos derradeiros de ordem civilizacional, os passos sociais, morais e políticos que levaram à primeira guerra mundial e, anos depois à segunda, pautam a latência da arte, que é sempre expressão de uma continuidade entre a harmonia e a beleza, mesmo quando o seu limite não ultrapassa — e em algum momento ultrapassou? — o produto e a ideia de uma estátua sem olhos.

O sentido último da obra de arte viria a ter, por necessidade da própria expressão «arte», uma estrutura lógica dos produtos, uma lógica, de certo modo inflexível, determinada pelos próprios materiais.

O que fizeram os artistas contemporâneos de Hofmannsthal terá sido, em parte, o porem de lado um certo (e agradável) sentido de decorativismo — que nunca deixou de existir até aos dias de hoje — , substituindo-o por uma «ornamentação» mais esotérica. (E neste trabalho de Manuel Valente Alves podemos encontrar como intenção programática o apelo à fórmula alquímica da preparação da pedra filosofal, de que um solve et coagula, acrescido das etapas purificatio, separatio e conjunctio guardam os vários aspectos desenvolvidos: as fotografias, o vídeo e o descer desde o nome Andréas até às obras do acervo do Museu Nacional de Arte Antiga presentes na instalação.)

O pendor esotérico de directa influência mozarteana percorre, insinua-se, perturba não só as cidades escolhidas para o enunciado final da novela de Hofmannsthal — Viena e Veneza — , como o próprio nome Andréas, que contém na sua grafia e na sua sonoridade a correspondência, em grego, à palavra «homem»; assim com se estabelece através de muitos dos enunciados dos dois painéis fotográficos (de 297x420cm cada um deles, formado cada um por 100 fotografias de 297x 420cm ) um lado de ocultação, de envio e de metamorfose. Tal como o território de desenho e de pintura das peças do Museu guarda uma noção de intensidade escondida pelo desfazer lento do tempo. Representam estas obras últimas a sedução e o logro de uma ideia e forma da arte que se pretende (e mais do que na lição de Kraus ou de Walter Benjamin, no pensamento de Wittgenstein) nem mitológica, nem histórica, nem naturalista.

Regressemos, com alguma brevidade, a uma passagem de Andréas, somente para demonstrar a fractura entre os «novos», que não vão saber manter, mais do que o Império, a ideia do Império, e os «antigos» que o oneravam com o preço da «verdade feia» krauseana e que, por si, também não conseguiram organizar a capacidade de resposta aos reptos que a contemporaneidade lhes exigia.

Karl Kraus refere-se com veemência contra a decadência e a mentira da sexualidade na sociedade vienense, na qual o homem desempenhava um papel egocêntrico, por demais egoísta e vulgar. Contrapunha a esse «realismo» sexual que despojava as relações homem-mulher, uma sexualidade que se deixasse impregnar de um misterioso elemento poético e criativo. Sentido que podemos observar em numerosíssimas passagens de Andréas:

«ela estava diante dele. Mas a sua posição em relação a ele, frente a frente, era bem outra. Ele sonhava e sentia este outro modo, como se não fosse uma visita ocasional que se sobressalta a cada estalido de uma porta, ou como aquele a quem se concedeu por fim um quarto de hora de distraída presença... não, ele era antes o amigo declarado, o mestre deste jardim encantado e o mestre da sua Dama. Perdia-se num sentimento confuso de felicidade, semelhante a um acorde vibrante de harpa através de todo o seu ser.»

4

Olhemos agora com alguma brevidade para as cinco obras presentes do Museu Nacional de Arte Antiga. Não são exactamente um caminho para a ruína, elas são as ruínas que ladeiam esse caminho. Limites de uma linguagem passada, apesar de duas dessas obras pertencerem ao século em que nasceu o autor de Andréas, o XIX. Uma será mesmo um excelente marco assinalando o caminho. Trata-se de uma pintura, ainda com alguma visibilidade, que nos oferece um «Capitel Composito». Pedra de ruína, que o caminhante poderia tomar como a parte que restou de umas tardias ruínas românticas; o que restou de uma coluna que teria sustentado uma pérgola assente sobre local elevado do caminho ou à saída de um cerrado bosque.

Pedra que teria feito parte de um ponto do qual o viajante pudesse ver até onde a vista alcança e descansar. Andréas, se fosse ele esse caminhante de algures para nenhures, haveria de concluir, ao desapertar os atilhos das botas, em si uma ruína de tardio gosto e de poeira e de solas quase rotas, haveria, pois, de dizer: já só se pode viver em silêncio. Andréas, por essa altura da viagem, não lia Rilke nem tão pouco Kafka; ele saberia, com exactidão, que se se quisesse aproximar, da incapacidade da linguagem para explicar aos outros o ser íntimo do homem seu contemporâneo, o seu próprio íntimo, teria que recorrer às páginas do livro que poderia trazer no bolso, O Jovem Törless de Musil. Aí, sim, encontraria o sentimento intenso; o mais real, mas também o mais impossível, o mais ruinoso de todos. «Coisas que para sempre permanecem nas profundidades da subjectividade de qualquer.» E estenderia uma das suas mãos para apanhar a última rosa do tardio outono. A que restara, caída, de intenso vermelho, ao lado do caído capitel.

Vem assinada essa pintura: Neves. O seu autor tão desconhecido hoje como a imaginária e bela condessa do castelo de Pormberg, que povoou o ininterrupto sonho de Andréas. Trata-se de uma tela de escola de artes. Com o ábaco mal lançado, de frente. Um qualquer funcionário escreveu a giz, «Obras Públicas». Alguém tentou rasurar esse giz, mas não o conseguiu. Rasura sobre rasura. Ruína sobre ruína. Mas não seria esse o modo ideal de quem caminhava entre usurário judeu e prestamista católico, como sucede num ou noutro passo da novela?

No verso da pintura pode ver-se a coroa real. (Coroa real, que por esses anos de oitocentos trazia parte da sua legitimidade nos príncipes de Bragança exilados, muito próximos da corte vienense. É de admitir que Andréas, dando-lhe a razão de existência que lhe atribuo desde início, terá entrevisto o rei D.Miguel, por detrás do vidro de uma modesta carruagem, em Dorotheer gasse. Mas quem reconhece um rei no exílio? Que me perdoem esta fuga legitimista ao redor do século XIX português.)

A outra obra do século XIX presente pertence a Domingos Sequeira. É bem o contrário de uma ruína, quer no seu estado de conservação quer na visibilidade dos seus elementos quer, ainda, no sentido último que, em si, representa e contém.

Trata-se do desenho a carvão e giz sobre papel, «A Ascensão» (1829-32). Tema que Sequeira desenvolve, quer em outros desenhos à pena quer a carvão e a giz sobre papel quer, ainda, em óleo sobre cartão e sobre tela. A «Ascensão» de Domingos Sequeira — na sua mole de gente ora iluminada na sua própria desfiguração ora carregada de uma liquida nebulosidade ora apresentando-se na plenitude dos seus rostos, o que quer dizer, que da grande fábrica do corpo humano se acentua a expressão da palavra e da visão — guarda, na elegância e claridade da figura de Jesus que se eleva do chão onde terá estado o seu túmulo, uma terminologia de mistério.

Como se o elevar o homem, depois de ter terminado toda a sua actividade enquanto ser vivo, quisesse demonstrar um para além da natureza humana e da linguagem, que são arte dos sentidos e da razão. Como se o elevar nos céus do nome Jesus, enquanto humano, pudesse provar, frente ao homem e à sua historicidade, que era parte de outro lado; portanto, Cristo, filho de Deus.

Encontra-se neste salto sobre o plano da racionalidade muito da noção da quádrupla raiz de Schopenhauer, que é uma partida para um logos verdadeiro, fundamento do a priori da própria linguagem. Nessa subida aos céus há uma ruptura com o passado histórico do homem. Estabelece-se uma profundidade, semelhante a uma passagem dos sentidos ao sentimento; território em que tanto se inscreve aquele que foi, também ele, fundamento de toda esta visão instaladora do espaço fotográfico e fílmico de Manuel Valente Alves — Andréas.

Mas com a sua noção de vontade, Andréas, na tentativa de escapar a toda a crítica e, na verdade, mais homem «sem qualidades» do que homem de vontade, alberga, em si, resíduos, que são coisas (atributos, não necessariamente qualidades) presas à superstição da palavra. Mais do que conhecer o que queria, ele conhecia aquilo que lhe ia cabendo em sorte, ele ia lendo, com alguma dificuldade, a epigrafia de uma ou outra lápide e o sentido da queda de um qualquer capitel composito, numa tentativa de ligar a lei física a uma qualquer interpretação de áuspice. É tempo de deixarmos Andréas, de uma vez por todas, entregue à sua sorte; que, como vimos, corresponde, na novela, a um destino de ninguém. Como se não fosse esse o destino de todos nós, espécie de logro surpreendente, que cai sempre, geometricamente, entre a ratio e a oratio de que nos fala Cícero no De Officcis.

Reflexos nas imagens de Valente Alves destas duas obras do acervo do Museu? Perto de um capitel derrubado não ficará longe um tanque de águas mansas onde se desenhe a passagem de carpas de dourado vermelho; assim como o abrir de nenúfares ou a presença de outras plantas aquáticas farão parte desse habitat. Num jardim de ruína existe sempre uma imagem de placidez pronta a ser captada e que se sujeita à aparição deambulante de um gato negro ou à circunscrita beleza vegetal de uma folha de agave; enquanto um entrecruzar de ramos secos nos levará à representação de um sentimento de dor e do seu superar, como terá tido lugar na desenhada «Ascensão» de Domingos Sequeira.

As duas outras pinturas do Museu, aqui presentes, são no seu estado de visibilidade uma acentuada ruína. Ambas do século XVI. O que delas se sabe através da notícia do seu registo no acervo do Museu, é muitíssimo mais do que aquilo que nelas se poderá ver. Uma prende-se a uma representação da passagem do Evangelho segundo Mateus que nos refere «Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo». A presença, ainda bem visível, de um quo latino permitiram ao historiador de arte que desta pintura se ocupou chegar ao in quo mihi complacui da passagem de Mateus. O que o levou mais à adivinhação da representação de Deus Pai, da pomba do Espírito Santo e de uma ausente figura de Cristo. Parece desenhar-se um anjo e outro anjo, ainda. Mas tudo isso não irá além de uma ruína de ruínas; de um hipotético rosto; rosto de rosto, pois um ectoplasma não chega a ser um rosto.

Traz a última pintura, garantiram-me, um «São Jerónimo». Não se vê leão, nem caveira, nem gruta, serrania, deserto, chapéu cardinalício ou escritório conventual ao modo perfeito semelhante ao que lhe organizou Antonello. Nada disso é visível. Somente ruína; e um resquício de pintura a vermelho (suficiente para conduzir a Jerónimo?) e uma ou outra tonalidade de erva ao rés das tábuas.

O seu melhor está no que não é mostrado: o reverso das quatro pranchas que suportam a (deixem-me dizer a inexistente) pintura. O rabo de andorinha que prende as tábuas centrais, esse, sim, é por demais visível. Quando, nas reservas do Museu me voltaram a pintura para que visse o travejamento, eu também vi poderosa aranha em tudo semelhante ao brutalismo castelhano (ou será só na sua declinação estremenha ou andaluza?) em que arrumei o reificado «São Jerónimo». E passando destas duas pinturas quinhentistas para a metodologia do trabalho visionado no levantar, quase ciclópica, de uma extensa construção de cimento, somos levados ao comprazimento divino com o brutal e babilónico erguer propriedade e objecto. A fala de Mateus, está carregada deste outro sentido, talvez mais próximo da impossibilidade de verdade no homem: «Este é o trabalho, a dor, o sofrimento do meu Filho amado» — vejam como ele se desenha na sucessão fotográfica, único homem; percebe-se que está a trabalhar com todo o aparato sensorial da sua natureza contingente; ao seu redor ninguém (o que é uma espécie de necessária ruína), excepto a vontade metafísica de uma expressão metafórica: a aparição da auto-consciência humana — «em quem me comprazo».

5

Olhemos agora para as imagens de Manuel Valente Alves. Pondo de lado elementos de onde tenha partido, quer os que se referem à novela de Hofmannsthal quer às obras pertencentes ao Museu Nacional de Arte Antiga. Percamo-nos um pouco nos percursos da sua linguagem, da sua percepção e da sua realidade.

De princípio, será difícil conceber como caminho para a ruína as etapas do solve et coagula do processo e da intenção alquímica. Mas se aproximarmos estas imagens entre si, alternando as do painel onde figuram o gato, os peixes e as plantas, do outro painel que nos mostra a mole de cimento, os andaimes, o ferro e a figura do artífice destruiremos o que possa ocorrer de harmonia; e a imagem exercer-se-á como caminho de ruína, circunstância a que o «fazer» não permanecerá alheio, pois a ruína traz consigo uma natureza operante e transformadora. E onde está o preto, o laranja, o magenta o cinza, o verde estão momentos que, para além da sua massa física, exprimem propriedades intrínsecas dos raios luminosos.

Uma grande extensão de ferro: primeiro malha vertical, depois, erguida, estendida em quadrícula sobre a lonjura da parede. Distanciando-nos da imagem, assemelha-se a aço que foi sobreposto sobre um lance de ferro.

Encontramos aqui uma ideia e uma presença de ruína, pois a ruína não tem necessariamente que ser o crescer de ervas ao redor de um capitel caído, de uma casa já só o desenho dos alicerces, um corpo a desfazer-se de doença; a ruína bem pode estar numa apaziguante gota de água geometricamente colocada na folha de um agave. A gota de água e a folha, na intensidade do verde, podem ser ou vir a tornar-se perfeitos instrumentos de treva e de temor. Não estão distantes do olho de uma serpente, no descanso de uma longa digestão, mas ainda e sempre atenta sobre o destino de qualquer possível e futura presa.

A própria água de um lago assemelha-se ao circunvolucionário corpo de jovens enguias, capazes de devorarem qualquer animal morto que caia no seu meio aquático; sobre essa festejada morte no líquido de prata do lago evolucionam as carpas vermelhas e florescem os nenúfares. (Sei que estou a usar metáforas mortas ou somente adormecidas, mas por isso mesmo bem capazes de nos aproximarmos de uma purificatio.)

Uma metáfora pode mesmo não conter nenhuma imagem visual (uma espécie de «ninguém» de Andréas — a ele regresso), mas contém sempre, mesmo que seja como alusão, a mais simulada comparação e a transferência de ideias que daí resultam, como o avançar (comparativo) para a estrutura de campos agrícolas, a partir do visionamento de uma simples folha de erva muito ampliada; pois os riscos da fertilidade que conduzem a água estão contidos na imagem dos esteios, dos vincos brancos existentes nessa folha.

Nestas imagens da fotografia e do vídeo de Valente Alves estão lançadas as escadas sobre a ruína; sobre uma distante Babel; longínqua, em crescendo; lanço de escada após lanço de escada. E aquele que as lançou é também aquele que as sobe segundo uma analogia matemática, segmento a segmento, proporção a proporção, degrau a degrau. Mesmo que um degrau falhe, a comparação que se ocupa das grandezas mensuráveis permanece, nem que seja no torturado ferro que se vai estender ao longo dos pisos: andares de «ninguém» que contêm um branco de cal, um branco de branco sujo, queimado na vertigem de uma obra colossal, erguida por ninguém, para ninguém.

(Encontro semelhanças, sobretudo no que respeita ao vídeo, com a ideia e o tratamento da obliquidade e também da descida e da «queda» do olhar, nos filmes de Catherine Yass, Descent e Flight, presentes na edição de 2002 do Turner Prize.)

As comparações são sempre engenhosas. Por isso, um grosso tubo percorre uma

(forma de) dor tecnológica — e não será já este o modo de toda a dor sentida? Lá vai o homem operador, engenheiro dos confins. Também ele se perde no encastrado das tubagens. Percorre a planura dos seus próprios passos. Balde em cada uma das mãos. O reboco do cimento fere-lhe o pano escuro das calças. Vamos abandoná-lo. Este é um Andréas bem nosso contemporâneo, por entre ferros unidos a outros ferros, presos por duplos anéis da mesma natureza. Fraccionados ferros a esses outros se justapõem. Traves de madeira. Tudo se estende sobre uma superfície de oleado; surge, molhado, sob a forma de uma pequena onda perdida do corpo maior da maré baixa atlântica. Talvez esta evocação de onda lance de novo Andréas para o seu exacto tempo e o faça caçador de baleias (coisa impossível para um austríaco) no estuário do Hudson.

Na imagem a água desfaz-se na própria água, dispõe-se a um atento exame, prisioneira entre duas lamelas. Que estrutura de ruína revelará? Compartimentada, estanque, entre caneladas folhas de alumínio. Do outro lado passa uma estrada, sinalizada, a espaços, por traços amarelos; dividem-na, para que receba um trânsito subterrâneo. Andréas segue esse caminho para a ruína. Veste-se ao nosso tempo: t-shirt branca, capacete amarelo na cabeça. No bolso guarda, verso a verso, um poema do seu mestre Hofmannsthal: «A Morte de Ticiano». Persegue-o uma espécie de ritmo, emanação ondulatória da natureza do ferro. Ele sabe, melhor do que qualquer de nós, que sob uma cor simples existe um número infindo de vibrações.

[FERNANDES JORGE, João Miguel, “Um caminho para a ruína”, in VALENTE ALVES, Manuel, FERNANDES JORGE, João Miguel, Andreas, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga/MVA Invent, 2003]