"Imagine-se um mundo de ninguém, obscuro e frio, perdido entre limites indecisos, confinando com nenhuma parte, mundo sem saída encerrado num espaço exíguo que se não pode pensar nem permite que se pense o que o cerca. [...]
A exposição de fotografia de Valente Alves «Uma vida interior» introduz-nos à completude imperfeita que caracterizaria para nós – caso pudéssemos vê-lo – tal mundo imaginário: o interior de uma casa é retido nos reflexos que nele introduzem brilhos que lhe não pertencem, sem que possamos recusar-nos à impressão de que, se alguma intimidade foi devassada pelo olhar da câmara, foi a de um olhar do – e coextensivo ao – mundo. [...]
Trata-se de um «novo mundo» arcano, pelo qual perpassa uma sacralidade originária que os nossos símbolos do sagrado dificilmente poderiam representar sem devassar, ou mesmo destruir: escondido ainda por poderosas sombras, ele aparece-nos envolto por um sagrado segredo tecido de negritudes. Em algumas imagens, a casa fotografada dá-se a imaginar como a oficina de Deus, que os primeiros fulgores de uma luz apenas feita começam a banhar: o pagão ícaro ainda não nasceu e o esboço em pedra de um anjo sexuado espera do Supremo Artífice a decisão que nunca chegará sobre o futuro do seu género, enquanto que o estudo para um Adão de não menos nobre matéria parece esperar, um pouco abaixo do anjo, o sopro divino que não chegará a insuflar-lhe vida... porque Aquele, no devido momento, preferirá o barro, mais facilmente moldável à Sua imagem. Como se Deus que, fora, acaba de criar pela palavra uma luz de que não precisa viesse a perder dentro, apesar da sua omnisciência, o espectáculo da irrupção dos primeiros fulgores através das mais densas trevas."
Pedro Miguel Frade, “Novo Mundo”, Jornal Expresso, Lisboa, 22 de Outubro de 1988