[Manuel Valente Alves, “Uma Vida Interior”, 1988]

UMA VIDA INTERIOR por João Miguel Fernandes Jorge

A colocação de um corpo escultórico de Ícaro está no início destas fotografias. Ou melhor, poderá ser o seu fio condutor e o que permitirá os sucessivos rasgões de luz e a introdução de múltiplas clareiras luminosas no conjunto destas imagens e deste pequeno espaço de interioridade.

Mas Ícaro terá que funcionar na leitura destas fotografias como um peso desencadeador semelhante a uma entrevista cadeira, a uma estreita lâmina de estore ou a uma revelada cabeça de boneco. Não são importantes para o construir deste trabalho, são simples elementos de uma tomada interioridade e surgem, ante o nosso olhar, porque os sucessivos rasgões (de luz), porque as produzidas clareiras (luminosas) o permitem e os tornam objectos de uma imediata e reconhecida existência. É só.

A vida interior é fotografada. E é essa presença que Manuel Valente Alves persegue. Eu não digo que o fotógrafo persegue a interioridade de uma casa, que poderia ser a sua ou a minha casa ou qualquer outra casa percorrida de sinais e poeiras, perdidos objectos de memória. Valente Alves fotografou uma vida interior, o que é bem outra coisa. Não a sua ou a minha vida ou a de qualquer outro alguém. O que ele fez foi registar atitudes e possibilidades de uma vida interior ficcionada. Portanto, falam-nos estas imagens de uma narração, que através de quinze fragmentos admite o desenvolvimento de uma história. Avancemos, agora, sobre a questão central dessa história.

Convém admitir que a fotografia pode arrastar consigo a presença da ideia de infinito e, sobretudo, que se jogam na finitude do seu espaço os sucessivos rasgões de luz que possibilitam o cumprimento de uma vida interior. Deste modo, a fotografia estabelece e permite o agir — o tomar corpo — de uma infinitude actuante que é sempre o lugar de uma sustentada vida e a presença pensada dessa mesma vida. Mas o lugar infinito não é lugar nenhum, dirão; e neste afirmar vai uma válida hipótese argumentativa. Lugar nenhum é o que julgo podermos ver na intensidade e na presença por onde uma vida interior, uma qualquer vida interior se inscreve e se desenvolve.

Inscreve? Desenvolve? A ideia de infinito reflectida no pequeno e útil espaço (27,8 X 27,8 cm) encerra o campo fotografado. A ideia de infinito suporta os sucessivos rasgões de luz e fala, a partir do local onde prevalece a clareira luminosa, de uma tendência natural que é a vida, uma vida interior.

Nela distingue-se uma indefinida extensão e uma definida consciência que se concretiza na incompletude das experiências (de uma vida): rasgões, clareiras, luminosidades, pesada sombra de outra vida; caracteres ardentes, os quais ora se intensificam ora se aniquilam através de uma busca — espécie de progresso sem fim —, completando as vozes, as imagens, a efectiva actualização do seu desejo.

Desejo de uma vida interior, simples comércio de um afirmado indivíduo, fotografado sob o ângulo das múltiplas mudanças de si.

Ícaro ou a cabeça de um boneco, ou somente o inclinado corpo de uma escultura, ou uma fina régua de estore ou o fragmento de um tecido; não importa, porque estas fotografias falam da captada cristalização de uma vida interior. A minha, a vossa, a do próprio fotógrafo, a de ninguém; não importa.

Concentra-se neste conjunto fotográfico um limite e uma unidade e a isso chamo "uma vida interior". E uma vida interior é sempre um mediador entre o absoluto e a consciência, entre o infinito e o finito que o sustém.

Divide-se uma vida interior nas expressões da sua vocação e no extremo da imagem fotográfica sempre está uma imperativa aprendizagem: um rasgão de luz, uma clareira que permite a ausência do negro e o espaço novo de um instante possível. Também é isso.

Também é isto: Ícaro, a cabeça de um boneco, etc. As diferentes ordens instituídas sobre a natureza de uma vida interior, sobre a mais longínqua imitação de uma natureza viva — a vida.

Ícaro segue o seu voo, que é sempre uma coisa muito relativa, aspiração e fatalidade do mundo, fotográfico ou não; não importa.

[FERNANDES JORGE, João Miguel, “Uma Vida Interior”, in catálogo da exposição “Uma Vida Interior”, Clube Cinquenta, Lisboa, Outubro de 1988]