[Manuel Valente Alves, “Le Temps Retrouvé”, 2001

A ARTE DO ACASO por José A. Bragança de Miranda

Partamos da série de fotografias de Manuel Valente Alves. São imediatamente reconhecíveis, sem deixarem de ser enigmáticas. São paisagens? A que se junta um retrato? Em princípio algo bem mais simples. Um jardim, um lago, árvores e erva, vultos de pessoas, passantes e ciclistas, algumas luzes, objectos, banco, cesto de lixo, um rosto e, finalmente, o azulado de uma atmosfera. De imediato o desejo de localizar, de datar: Hamburgo, 13 de Janeiro de 2001. Ao entardecer? E um título que as associa: «Le temps retrouvé» que recorda Proust.

Naquele mesmo momento, num jardim qualquer, o de Hamburgo, uma infinidades de imagens e de coisas despediam-se umas das outras. Perderam-se, mas estas ficaram. Noutros jardins, noutros locais, dissipavam-se sem nada restar delas. Perdidas ainda noutros tempos. Seria preciso um espaço que associasse, ao mesmo tempo, as imagens tiradas e as imagens por tirar, as coisas com imagens e as coisas que não acederam à imagem. Porque parece haver aqui uma injustiça essencial: só muito pouco pode ser «salvo». Eis o que queremos interrogar, esse permanecer, e a sua relação com a «arte» no seu momento actual.

Diz-se que vivemos na época das imagens. Nada mais falso. A época da imagem foi aquela, teológica, onde a imagem de Deus organizava todas as outras. Que descobria que o «existente» na sua imensa proliferação era sempre o mesmo, imagem pálida de algo mais essencial, a salvação, para que todas as coisas apontavam. Desaparecido Deus, logo filósofos movidos pela vontade de verdade se esforçaram por instalar uma sistema que permitisse hierarquizar as imagens, controlá-las. Os fantasmas, os espectros, as sereias e os monstros, tudo desapareceria se não tivesse sido protegido pela «estética». O romantismo mais não foi do que um espaço de acolhimento dessas imagens exiladas, que nele procuravam asilo. Mas ficavam aí como simples «cópias», sem densidade nem peso.

Foi necessário um desastre operado tecnicamente, para que todo este sistema de controlo desabasse, deixando nostalgias infindas atrás de si. Num ensaio famoso sobre a «obra de arte», Walter Benjamin diz-nos que houve, antes de mais, uma crise metafísica, cujo efeito essencial foi a perda de «framing» que criava, fechando-o, o espaço em que as imagens se fixavam e os objectos circulavam. A crise descrita por Benjamin passa pela reversão de corpo e imagem, de cópia e original, de presente e ausente. Que Benjamin descrevia como a «crise da aura». Com a perda da aura o que desaparece é a estrutura veicular do «além», que tudo arrastava atrás de si, mesmo o que não era fixável, que só era «imagem» para os «deuses».

Mas se podemos falar de desaparecimento dos «framing», não significa que estes tenha desaparecido. Multiplicaram-se antes infinitamente. O caso das máquinas fotográficas é esclarecedor. À medida que estas se multiplicaram, cada um passou a viajar como um pequeno produtor de «frames» que tudo podia registar. Na situação moderna o que agora regressa é o acaso, a contingência, tornando tudo «absurdo», desumano. Sendo tudo teologicamente «imagens» de um olhar absoluto, aparecem agora numa dispersão e invisibilidade que parece conferir responsabilidades inauditas à «arte».

É certo que não faltam hoje matemáticas do «caos», da contingência, e que esta está a ser incluída em mecanismos que a usam, basicamente informáticos. Não a abolem, fundem-se com ela. Tudo fica retido no «espaço» das bases de dados, mas «memórias» do computador ou da máquina digital. Caoticamente, mas esse caos é controlado. Numa instalação interactiva, por exemplo, todas as possibilidades estão computadas, mas ninguém as pode computar... a não ser o computador. Estamos perante um mau acaso. Infinito para os humanos, finito para a máquina. Trata-se de baralhar esta divisão. Como é possível fazer o mesmo, algo similar, sem abolir o acaso em que mergulham todas as coisas? Tinha razão Mallarmé ao dizer que é impossível abolir o acaso, mas mal podemos entendê-lo…

Hamburgo, 13 de Janeiro de 2001, um entardecer. Aquele dia, aquele momento... O que não pode vir nas imagens? A sua contingência, o acaso que as põe à frente, imperativas, e que a imagem tirada acaba sempre por anular. Eis as imagens na sua máxima opacidade. Tudo o que não pode vir nas imagens acompanha-as como um «halo», como uma «aura». A crise da «aura» de que fala Benjamin implica fundamentalmente que o «longínquo», o «único» só é pensável com um lance ao acaso. São estas «imagens», mas poderiam ser outras. Esta obra também eu fazia… Na sua banalidade estas frases dão conta de todo o «framing» é agora basicamente técnico. O que afecta não apenas o aparelho que fixa num pequeno «quadro», mas os enquadramentos de todo o género: a literatura, o mito, o museu, a história. Tudo efeitos maquinais. Retorna, assim, a monstruosidade das coisas, mas sem coisas. Esta a situação descrita por Hölderlin como «estado de indigência». Caídas as coisas na sua invisibilidade, no esquecimento, desligadas, tratar-se-ia de voltar a inserir, de ligar, aquilo que se desligou, necessariamente? Daí a sensação difusa de que a arte salva ao «fixar», ao trazer à memória, ao fazer «permanecer». No momento em tudo se pode registar é como se cada coisa estivesse à procura de salvação. Baudelaire falava neste contexto de uma «anarquia das coisas».

Manuel Valente Alves coloca as suas fotografias, ligando-as entre si, numa instalação iluminada por Marcel Proust. Através de Proust recoloca uma questão radical: o que pode ser «salvo» quando tudo pode ser fixado? Mais ainda, a haver arte numa época da contingência total, ela está em jogo na tensão entre o registo total, a memória absoluta, e o gesto em que a obra surge.

A situação é grave porque as obras que fazemos compartilham do mesmo destino. De facto, se qualquer associação ou junção abole o acaso, apresentando-se como «obra», o acaso acaba por absorvê-la. Na actual situação todas as «obras» são de imediato submergidas pelo acaso, circulando arbitrariamente, ao sabor das instalações, das críticas, dos museus, ou no vazio ao lado de tudo isto.

Apesar de em toda a «obra» ou imagem existirem sempre movimentos internos, bifurcações ocultas, telescopagens gulliverianas, estas são imediatamente lesadas pela vontade de «obra», que opõe à sua presença absoluta a contingência do «real». Ora, a sensação de que a obra abole o acaso, escolhendo o que deve permanecer, fundando aí a sua própria permanência, tem a ver com o facto de sendo qualquer obra um efeito de «frame» e um «framing», tudo o que nela entra parece fatal. Mesmo as obras interactivas que passam por uma infinidade de «estados» ou «formas» têm na modulação das suas séries caóticas a sua fatalidade. Fatais: as aproximações, as ligações, as justaposições «ajuntadas» num «frame» (e uma «instalação» vale ao ser um «frame» imensamente frágil). Entende-se, por isso, a insistência do vanguardismo na «destruição» da obra, fazendo-a explodir em fragmentos, mas também seleccionando, ampliando, «misturando», que depois podem ser «apropriados» e postos de movimento... até caírem em novo «frame». Por essencial que isso seja, é insuficiente.

O problema proustiano por excelência está em recusar a memória total, o registo de tudo. A patologia do acaso seria abolida ao «reter-se» tudo. De facto, a memória total só pode ser a máquina. Uma máquina que fotografe sozinha é o bom exemplo disso, e é o que há mais. O mundo está a ser videografado, filmado, digitalizado. Cada máquina já tem um «framing» incluído. Seria possível fotografar «tudo», o movimento, incluído. É o cinemático que alimenta as máquinas, sobretudo as que visam a «animação» da vida. Eis a vantagem absoluta das máquinas, mas também a sua debilidade de raiz. O que fazer da sua capacidade de «fixação»? Claude Simon disse algures: «Nenhum espírito humano pode guardar na memória aquilo que o olhar abraça durante umas dessas incessantes fracções de segundo que o tempo faz suceder a uma velocidade vertiginosa». A vantagem da fotografia «é a de fixar, de memorizar aquilo que a nossa memória é incapaz de reter, ou seja, a imagem de algo que só teve lugar ou existiu numa fracção ínfima de tempo». Mas a fixação de tudo equivaleria a «congelar» o «real». Ora, o humano é uma fixação que perde ou rarifica, salvando «tudo», de outra maneira que não a técnica.

É isto mesmo que a faz da fotografia uma experiência verdadeiramente reveladora, contrariamente às outras artes. Estas últimas sempre trabalharam o simulacro, enquanto que a fotografia trabalha a matéria (que todo o simulacro oculta). Uma frase esclarecedora de Pasternak: «Ninguém faz a história, não se pode vê-la, tal como se consegue ver a erva a crescer». De certo modo, no essencial não se faz nada, a não ser afectar a «matéria» pelo «simulacro». Tropismos de todo o género, que estão dentro e fora das «obras», tão obscuros como o movimento irreprimível da «erva a crescer», com o seu barulho inaudível, etc. Tudo é magnetizado mas a finalidade falta ou, então, é tão invisível como a erva a crescer. Ora, como é que erva cresce até tornar-se a «nossa» história? Ao tornar-se ela própria imagem da história. Pode ver-se a erva a crescer e ouvir o seu ruído, no meio de todas as coisas que a «história» associa, que têm a fragilidade da «erva». Que está abundantemente em Hamburgo, 13 de Janeiro de 2001. Temos, portanto de pensar a obra de arte como idêntica à tensão entre o «real» e o «simulacro». Só o simulacro salva, e este está perdido na contingência, nos recessos do «real».

Daí que, muito proustianamente, a arte seja justamente o processo de procurar. Está em causa «procurar» para poder guardar ou «fixar»? Trata-se, antes, de lançar a procura no que se fixou, no que se guardou. Aliás, fixar «tudo» nega a própria arte, tornada num mapa de 1 para 1, que nos inclui antes mesmo de nos depararmos com a obra. A mesma pergunta retorna uma e outra vez. Porquê guardar esses momentos, e essas passagens, quando demasiado tem de ficar de fora, para além do «frame»? Daí a inutilidade estética de fixar tudo. Nada se resolveria, tudo se agravaria. Contra a opacidade da obra que recai, assim, na contingência que quer abolir, contra a vontade de tudo restituir ou de restituir como obra absoluta, precisamos de uma nova física poética, que faz todo o fascínio dos «ready-mades» de Marcel Duchamp. O «infra-mince» é a tensão do simulacro na objectividade do «fixado». É o que Lezama Lima chama a «cantidad hechizada» ou a «matéria artizada».

A lição de Proust, aduzida por Valente Alves, é essencial deste ponto de vista. Afinal de contas, Le temps retrouvé é sinal de que a escrita de Proust se tornou finalmente possível, que se tornou em «quantidade enfeitiçada». Era tudo o que ele desejava, essa é toda a sua «felicidade». Nem «tempo reencontrado», nem «procura do tempo perdido», antes, como bem viu Nathalie Sarraute, procura do «tempo futuro». Trata-se de abrir o presente, de inventar o tempo.

Quando Goethe diz «detém-te, belo instante», diz a metade da «arte», o parar e fixar, que anula o tempo, mas falta a outra metade. A «invenção do tempo» no próprio momento em que este se anula. Em que este se cola à vida, se enrosca nela. Mas não se trata de uma vida «qualquer». No caso de Proust é uma vida de «escritor» ou de «artista». Mas existem outras formas de vida que precisam da arte, sem serem de «vidas de artista». Trata-se de afectar o comum, de nele se inserir, através do simulacro de uma vida que verdadeiramente não se escolheu. O eterno retorno é a descoberta do «peso máximo» do particular, do contingente. Estamos aparentemente diante de outra forma de fatalidade... só que nela vigora a máxima liberdade.

Em vez de se estar obcecado pelo particular, mesmo que seja o da «obra» que se quer sempre absoluta, é preciso partir da experiência inversa. O «máximo peso» com que Nietzsche descreve o «eterno retorno» pode vir de qualquer lado, a todo o momento. Por exemplo, da famosa «taça de chá» proustiana, da «petite madeleine» que deixa o seu sabor na taça. O que se oculta por detrás da «banalidade insondável» de taça de chá com migalhas da madeleine, esse biscoito em forma de concha? Basicamente uma «epifania» que ocorre «distraidamente» e de súbito. Será que retorna através da «Madeleine» tudo aquilo a que ela esteve associada, e finalmente o próprio mundo? Tudo indica que não. A madeleine é um «lance de dados» feliz, que deu sorte. O herói que procura escrever e escapar à banalidade da existência é «salvo» pelo sabor da madeleine. As imagens vêm catadupa, e cada uma delas é um obstáculo a todas as outras. Elas sobrepõem-se, encavalitam-se, na «memória» que elas ocupam. Trata-se de desocupar, de libertar a memória, de libertar, de criar o vazio. Depois tudo é possível.

A lição de Proust é que isso ocorre incontrolavelmente, sem domínio nem método. A haver método seria o da distracção. Como é possível fingir a distracção e estar distraído, mesmo? É preciso ter «sorte», o que é efeito de acaso, pois como diz Proust: «O passado ... está escondido fora do domínio e do alcance da inteligência, num objecto qualquer (na sensação provocada por esse objecto material), de cuja existência não temos a mínima suspeita. Depende do acaso que antes de morrer encontremos esse objecto, ou que não o encontremos ». É desse «acaso feliz» que tudo se abre, e com ele o trabalho, a vida.

Algo sucede ou não. Trata-se de acontecimentos. De um acontecimento que passa pela obra de arte, sem nela se esgotar. E este pode vir através de qualquer coisa, tudo o que o nega, pode propiciá-lo. Só assim se abole a má contingência das coisas, das suas aparências e a sua infinita circularidade. O objecto por onde vem o acontecimento torna-se assim idêntico ao acontecimento, parecendo de repente «encantado», sofrendo uma maravilhamento que do «real» uma «matéria artizada» que repentinamente nos «inclui». O famoso «punctum» de Barthes, é um tropismo que salta de algo aparentemente fixo e fixado, uma «obra» ou algo similar, afectando a nossa liberdade.

É possível que uma obra de arte possa provocar este efeito? Proust mostrou, ao invés, que toda a obra é efeito deste efeito. Diz-nos ainda que é incontrolável, que é um efeito do acaso: «Depende do acaso que antes de morrer encontremos esse objecto, ou que não o encontremos». Toda a instituição da arte é baseada na deletéria ilusão de que se está em posse das regras da criação da obra de arte. Com regras e saber pode fazer-se sempre uma «obra», mas não de «arte». Mais grave ainda, uma obra de arte não é nada senão uma afecção do «comum».

É assim que leio a tese de Duchamp de que «é o espectador que faz o quadro». Na verdade, a vontade de fazer «obra de arte» é o sinal de uma falha essencial, a que os românticos chamavam «inspiração» à falta de melhor nome. Marcel Duchamp falava, um pouco ambiguamente é verdade, de um «fenómeno de transmutação» defendendo que «com a mudança da matéria inerte em obra de arte, tem lugar uma verdadeira transubstanciação e o papel importante do espectador é determinar o peso da obra na balança estética». Trata-se de um «acrescento» à obra, que seria sempre «aberta»? Nada disso, antes oscilação, «peso» estético que só tem sentido na «vida». Nada se passa no seu interior, como se fosse uma «noz», mas, à maneira de Joseph Conrad, tudo está na maneira como, estando feita, integra o que «capturou» ou fixou, aquele que a fez e teve de ficar de fora dela, mas também tudo aquilo com que contacta. Outras, coisas, outras imagens, o «espectador». Daí que Beckett sustente que «Proust não se importa com conceitos, ele persegue a Ideia, o concreto». Ora, que é a ideia senão o contorno, nunca definitivamente traçado, e que se abre e reabre meandricamente? A ideia o envelope da obra, a obra o envelope da vida. O obra de arte está morta se não conseguir deslocar o seu «envelope», se não afectar indefinidamente, arriscando a sua própria destruição.

Daí que a famosa experiência duchampiana mais não é do que esse «envelope» ou «embalagem», que adquiriu uma certa velocidade e continua o seu curso. Em direcção… a quem a possa receber, ou não. É o facto de estar em movimento que confere «eternidade» à obra e salva aquilo que ela fixou da própria fixação estética. Até que a «imagem» surja. Para que ela se «faça», como diz Beckett. Ora, ela faz-se contra as «imagens», as «fotografias», e todas as coisas. «Faz-se a imagem», contra as bandas da imagem, e as imagens em bando, para emergir como uma espécie de vertigem, como um salto de tigre, pesando sobre nós que vemos, ou estamos aí, quando temos a sorte de aí estar, provocando um abalo que nos inquieta… algo que pressentimos e depois exploramos toda a vida, para podermos continuar a viver. Simples acaso...

[BRAGANÇA DE MIRANDA, José A., “A Arte do Acaso”, in catálogo da exposição “Le Temps Retrouvé”, Galeria Luís Serpa, Lisboa, Junho de 2001]