A INVENÇÃO DAS NUVENS
Manuela Matos Monteiro

A definição científica diz que as nuvens são um conjunto de moléculas de água, líquidas ou sólidas que estão na atmosfera. Essas moléculas agregam-se e desagregam-se o que as torna efémeras na forma. No século XIX, a ciência procurou explicar as nuvens que eram até então do domínio das artes e da literatura. Diferentemente de Keats, que acusava Newton de ter destruído a beleza e a poesia ao explicar cientificamente o arco-íris, Goethe fica fascinado com a classificação das nuvens proposta por Howard (1), “O homem que distinguiu a nuvem, da nuvem”. Num texto dedicado a Howard, Goethe declara: “O meu desejo de dar forma ao informe, de encontrar um princípio que possa reger a infinita mutação das formas, está igualmente patente em todos os meus esforços no âmbito científico e artístico” (2). Em 1817, elabora um ensaio em que apresenta a classificação de Howard revista e modificada com o título, “Camarupa”, – nome da divindade indiana que que tem como atributo mudar as formas das coisas visíveis, deusa que pode tecer várias formas entre as quais formar e desfazer nuvens. Na penúltima linha do poema dedicado a Howard, escreve: “A nuvem, sobe, adensa, esgarça, desce: stratus, cumulus, cirrus, nimbus”.

 
O desassossego das nuvens
O desassossego das nuvens inquieta porque não obedecem aos eixos disciplinados da nossa representação do mundo: o espaço e o tempo. Pensamos o mundo a partir das noções de lugar, território e fronteira que não se aplicam às nuvens porque incertas em tamanho e forma: ora se alongam, ora se comprimem acabando por desaparecer ao mudar de estado. Classificadas, podem ser nomeadas, mas o seu desassossego torna precário o conforto da categorização. O tempo das nuvens é incerto não obedecendo à agenda disciplinada dos relógios, ora passa mais rápido em tumulto, ora mais lento em divagação num eterno devir. Bernardo Soares diz que as nuvens são “ficções do intervalo e do descaminho” (3), o que nos remete para a nossa condição de mortais, finitos, transitórios, precários. Desassossegadas, as nuvens inquietam-nos e ao mesmo tempo fascinam-nos porque são irrepetíveis, intangíveis, sem residência, nem âncora.

Para lá das nuvens

Stieglitz, depois de um percurso que marcou a história da fotografia, dirige a sua câmara para as nuvens desenvolvendo um corpo de trabalho entre 1923 e 1932. As cerca de 220 fotografias, organizadas na obra “Equivalents”, apresentam nuvens sem ter o horizonte como referência. São imagens que correspondem ao desejo de o autor libertar a fotografia do nível da representação literal da realidade. Constituem as primeiras obras de fotografia que se podem considerar abstratas.

Manuel Valente Alves vai mais longe. Tal como Stieglitz, liberta o tema da interpretação literal no sentido de uma progressiva abstração. A radicalidade da sua proposta manifesta-se nos desenhos que serão a sua expressão mais depurada. No seu percurso criativo começou primeiro pelos desenhos, seguiram-se as fotografias, depois as pinturas a que se seguem de novo os desenhos que são reconfigurados e mais ligados à pintura: as nuvens aparecem enlaçadas nas geometrias.

Um percurso, um (des)caminho

A exposição começa com uma fotografia a preto e branco (2021) em que as nuvens têm uma presença discreta como se fossem tão só uma citação a enquadrar uma questão maior: uma fortaleza de pedra destaca-se no horizonte com o mar como fundo. É uma presença robusta mas que apresenta sinais de destruição, reflexo da interação conflituosa entre arquitetura e paisagem, entre a natureza e a cultura enquanto produção humana. E este conflito pode ser intuído nas pinturas e desenhos organizados em linha que desaguam no vídeo “Chão de Lava” filmado em Tenerife. Constituído por imagens fixas e em movimento, apresenta a paisagem definida pelo vulcão Teide e ocupada pela presença humana como se o ser humano estivesse sempre a testar os seus limites à maneira do Fausto. Subjacente a esta exposição e a tantos outros trabalhos do autor, está uma reflexão sobre a relação complexa e crítica entre a natureza e a cultura.

Para Manuel Valente Alves as nuvens não são cenário como são para tantos pintores, não as desdobra para as analisar como fazem os cientistas nem as encara apenas como objetos estéticos. Trabalha-as criativamente e os três livros de artista e pinturas de nuvens em mesa apresentam o seu labor como que a contar um percurso em que domina a depuração do discurso sobre as nuvens.

Inventadas, as nuvens não perdem a sua identidade: levam-no mais longe numa reflexão maior e é bem possível que nas nuvens passemos a encontrar os desenhos de Manuel Valente Alves.

(1) On the Modifications of the Clouds and the Principles of their Production, Suspension and Destruction, Luke Howard, 1803

(2) O Jogo das Nuvens, John Wolfgang Goethe, p.29, Assírio & Alvim, selecção, tradução, prefácio e notas de João Barrento, 2003
(3) Livro do Desassossego, Bernardo Soares

THE INVENTION OF THE CLOUDS

Manuela Matos Monteiro
 

The scientific definition says that clouds are a set of water molecules, liquid or solid, that are in the atmosphere. These molecules aggregate and disintegrate, which makes them ephemeral in form. In the 19th century, science sought to explain the clouds that until then were the domain of arts and literature. Unlike Keats, who accused Newton of having destroyed beauty and poetry by scientifically explaining the rainbow, Goethe is fascinated with the classification of clouds proposed by Howard (1), “The man who distinguished the cloud from the cloud”. In a text dedicated to Howard, Goethe declares: “My desire to give form to the formless, to find a principle that can govern the infinite mutation of forms, is equally evident in all my efforts in the scientific and artistic field” (2). In 1817, he elaborated an essay in which he presented Howard's classification revised and modified with the title "Kamarupa", – name of the Indian deity whose attribute is to change the forms of visible things, a goddess who can weave various forms, among which forming and breaking clouds. In the penultimate line of the poem dedicated to Howard, he writes: “The cloud, rises, thickens, thins, descends: stratus, cumulus, cirrus, nimbus”.

The restlessness of the clouds
The restlessness of the clouds is unsettling because they do not obey the disciplined axes of our representation of the world: space and time. We think of the world from the notions of place, territory and frontier that do not apply to clouds because they are uncertain in size and shape: sometimes they stretch, sometimes they compress, ending up disappearing when changing state. Classified, they can be named, but their restlessness makes the comfort of categorization precarious. The time of the clouds is uncertain, not obeying the disciplined agenda of the clocks, sometimes it passes faster in turmoil, sometimes slower in digression in an eternal becoming. Bernardo Soares says that the clouds are “fictions of the interval and the detour” (3), which takes us back to our mortal, finite, transitory, precarious condition. Restless, clouds worry us and at the same time fascinate us because they are unrepeatable, intangible, without residence or anchor.

Beyond the clouds

Stieglitz, after a path that marked the history of photography, directs his camera towards the clouds, developing a body of work between 1923 and 1932. The approximately 220 photographs, organized in the work “Equivalents”, present clouds without having the horizon as reference. These are images that correspond to the author’s desire to free photography from the level of literal representation of reality. They constitute the first works of photography that can be considered abstract.

  Manuel Valente Alves goes further. Like Stieglitz, he frees the theme from literal interpretation towards a progressive abstraction. The radicality of his proposal is manifested in the drawings that will be his most refined expression. In his creative path, he started first with drawings, followed by photographs, then paintings, followed again by drawings that are reconfigured and more connected to painting: the clouds appear entwined in the geometries.

A route, a (mis)path

The exhibition begins with a black and white photograph (2021) in which the clouds have a discreet presence as if they were just a quote framing a larger issue: a stone fortress stands out against the horizon with the sea in the background. It is a robust presence but one that shows signs of destruction, a reflection of the conflicting interaction between architecture and landscape, between nature and culture as a human production. And this conflict can be intuited in the paintings and drawings organized in a line that flow into the video “Chão de Lava” filmed in Tenerife. Consisting of still and moving images, it presents the landscape defined by the Teide volcano and occupied by human presence as if human beings were always testing their limits in the manner of Faust. Underlying this exhibition and so many other works by the author, there is a reflection on the complex and critical relationship between nature and culture.

    For Manuel Valente Alves, clouds are not scenery as they are for so many painters, he does not unfold them to analyze them as scientists do, nor does he see them simply as aesthetic objects. He works them creatively and the three artist books and paintings of clouds on a table present his work as if recounting a path in which he mastered the purification of the discourse on clouds.
Invented, the clouds do not lose their identity: they take you further into greater reflection and it is quite possible that in the clouds we will find the drawings of Manuel Valente Alves.

(1) On the Modifications of the Clouds and the Principles of their Production, Suspension and Destruction, Luke Howard, 1803

(2) O Jogo das Nuvens, John Wolfgang Goethe, p.29, Assírio & Alvim, selection, translation, preface and notes by João Barrento, 2003
(3) Livro do Desassossego, Bernardo Soares

Exhibition

2023  Manuel Valente Alves, A INVENÇÃO DAS NUVENS [THE INVENTION OF THE CLOUDS], curator Manuela Matos Monteiro, MIRA FORUM, Porto

Bibliography

Manuela MATOS MONTEIRO, A Invenção das Nuvens 

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