Com a câmara fixa ao corpo, o operador não se distingue da multidão. Eu e os outros. "Sartre escreveu, cinicamente, que o inferno são os outros. Referia-se à impossibilidade de escaparmos ao juízo dos outros, fazendo da consciência uma obrigatoriedade. Não posso ser como quero, fazer tudo o que me passa pela cabeça, sob pena de padecer as duras penas da responsabilidade e da lei. Os outros são uma consciência imposta, uma repressão sobre o eu.
No entanto, os contadores de histórias, os inquiridores do mundo, os espíritos mais inquietos e benfazejos, fazem também parte do outro.
Husserl, que dominava menos o floreado do verbo do que Sartre, mas que era mais íntimo da emoção do logos e dos segredos da sua partilha, sabia que não era assim. O outro não é o inferno. É quem se chega ao pé de nós junto ao fogo para desfiar o fio narrativo. O outro, como qualquer letra do alfabeto, só funciona num código múltiplo, num jogo de encontros e desencontros, de um tecido que, mesmo rasgado e em farrapos, continua a trazer a memória das carícias à nossa pele cansada."
Emília Ferreira, “No princípio era o desenho”, in “Manuel Valente Alves – Cadmo e Harmonia”, catálogo da exposição, Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, Almada, 2007