[Manuel Valente Alves, “Cadmo e Harmonia”, 2007]



NO PRINCÍPIO ERA O DESENHO por Emília Ferreira


1.

No princípio, era o desenho. Um vestígio, uma marca que cedo passou

do acaso à intencionalidade. Logo o desenho se tornaria projecto e se

confundiria com o desejo, o desígnio, a vontade. Como se apenas víssemos

ou apenas reconhecêssemos o mundo porque já o tínhamos encontrado

antes, pensado antes, organizado no habitáculo íntimo dos nossos

pensamentos. Como alguém já disse, vemos o que estamos preparados para

ver. Assim aconteceu também neste processo de que a exposição de Manuel

Valente Alves dá conta. Apontando ao primado e à reflexão que pressupõe,

os desenhos concebidos por para esta exposição iniciam o processo deste

trajecto plástico com uma proposta de organização formal. Ou seja: os

primeiros desenhos funcionam como uma escrita prévia. Preparação para a

viagem, eles prevêem o que o autor iria encontrar depois.

O registo fotográfico é o segundo momento. Nele encontramos as

paisagens que o desenho havia preparado. Como se Manuel Valente Alves

tivesse chegado ao lugar – no caso, Berlim, cidade simbólica da Europa,

metáfora dos raptos e feridas primordiais, metáfora do reencontro e da

reconstrução – e tivesse reconhecido no traçado dos seus edifícios, das suas

estruturas, superfícies, texturas, o que tinha previamente organizado em

Lisboa.

Pensa-se uma cidade para depois a erguer ou reencontrar? Os

primeiros desenhos desta série são, seguramente, a metáfora para a

construção da cidade de acordo com a geometria dos céus. Uma

organização mental, divina – se quisermos embrulhar-nos no manto

mitológico – uma ideia do que o mundo pode ser. E depois como se faz

quando se viaja e queremos recordar o que vimos? Dantes desenhava-se,

também. O desenho era registo, memória. Hoje, aproveitamos as

possibilidades mais imediatistas dessa outra escrita, feita com luz. E, no

caso, esse exercício redobra e confirma a imagem inicial, o projecto.

Fotografamos o que já tínhamos visto? O que queríamos encontrar? O

que insuspeitadamente descobrimos? Nestas imagens, a cidade é

confirmada como criada de acordo com a geometria dos céus, repete

claramente o plano organizado, simétrico, seja nas colunas de pedra ou de

betão, nas escadarias, nas janelas, nas superfícies dos edifícios ou no

pavimento das ruas, nos transportes que passam e deixam a sua marca

luminosa, ou na ordenada geometria da morte, patente no padrão construído

pelos blocos austeros do memorial judaico.

Uma nota importante, neste ponto: nenhum elemento fotografado é

imediatamente reconhecível. Cada imagem é um fragmento. Um estilhaço

urbano, um risco reminescente. Como o instante permanece no registo

fotográfico, isolado da linha cronológica mais vasta, também o pormenor é

aqui olhado como um episódio. Um momento. Um ponto. Do mesmo modo

que desconhecemos o lugar ao qual vão dar estas escadas, também não

percebemos de imediato que os paralelepípedos de cimento, ordenados e

limpos, representam um cemitério. Essa informação, marginal à narrativa

formal, sublinha a irrelevância do cartaz turístico, do guia do viajante, a favor

do primado do desenho. Não importa exactamente o que é, mas o modo

como o vemos e o damos a ver.

Porque na verdade, a narrativa, por muito que se enquadre, é sempre

necessariamente parcelar. As histórias começam com uma perturbação

aberta no fio da vida e prosseguem enquanto o problema permanece por

resolver. Compreensivelmente, terminam assim que se encontra resolução.

Por isso, como notou a ensaísta Louise Poissant, as pessoas felizes não têm

história. O enredo, palavra que em si contém a semente do labirinto, é

precisamente o novelo do enigma. E este é o eixo de todas as histórias. O

fragmento funciona como um condensado do mistério. Pode ou não conter

em si perturbação. Não sabemos. Mas queremos acreditar que sim. E é essa

bruma que nos conduz ao abismo.


2.

Dos céus para a terra, da geometria pura para a sua materialidade, as

fotografias registam vários motivos. Modo imediato e sem intermediários de

captar o que é visível, a pele do mundo, estas imagens não se limitam

contudo a registar o que a luz molda nas formas, mas sobretudo o que de

desenho persiste no existente. Essa intensa ordem do real, furada

ocasionalmente pela mancha pictórica de uma superfície de oiro (ou de um

amarelo metálico que o simula, simulacro do metal simbólico), pelo contraste

opaco de vermelho e de negro ou pela boca de Hélio rasgando o céu,

permanece intacta, na sua ordem de complementaridade (verticais e

horizontais cruzam as fotografias) como se os deuses ou um desejo maior de

racionalidade mantivessem um claro domínio desse traçado.


3.

A Europa nasce da mitologia grega. O mesmo é dizer que, como

civilização, é esse o ponto inicial, o umbigo, o ovo primordial. É daí que

todos vimos. Sobre os ombros desses gigantes, nós vemos mais longe.

Assim afirmou a Idade Média, devedora de uma cultura filosófica anterior.

Assim permanecemos hoje. As histórias que contamos têm invariavelmente o

sabor desses velhos deuses. As fadas e as bruxas que povoaram os séculos

desde então, habitando lugares que nunca existiram mas que permanecem

até hoje, lugares que sabemos exactamente onde ficam, na geografia íntima

das histórias, têm parentesco estreito com esses habitantes do Olimpo e as

suas artimanhas, as suas fraquezas, os seus poderes, as suas falhas.

Humanos, demasiado humanos, esses deuses invejaram-nos, cobiçaram as

nossas vidas finitas, o fulgor que as obriga ao inesquecível. Dominando

carros puxados por leões e javalis, prendendo heróis com cabelos que se

transformam em correntes, mudando de aparência para seduzir ou punir, eles

coabitam connosco. Fazem parte de nós, do nosso código genético. Ficounos

o gosto de contar, um gosto de puxar fios, de revisitar labirintos.

Mesmo que já não consigamos ler os céus, como notou o ensaísta

Roberto Calasso, em As núpcias de Cadmo e Harmonia, mesmo que já não

ouçamos sequer o rumor das estrelas, o farrapo de sentido que ainda aí

encontramos torna-nos parte do fio da tradição.


4.

No meio da ordem, a presença humana (único elemento natural, a par

de uma ocasional presença de verde numa única imagem) move-se como a

componente errática, vagamente dionisíaca (embora de aparência

controlada, racional, apolínea) em todo o vasto cenário matemático. No meio

da ordem, pode então fluir o puro júbilo. O inebriamento da vida. Um grupo

de jovens avança com alegre descuido sobre um caminho de asfalto. É uma

metáfora para a memória da Primavera primordial erguendo-se sobre o

construído. Aqui não há maciços de narcisos para desviar as atenções das

raparigas e as levar à perdição.

Entre as colunas que sustentam o céu e a arquitectura das nossas

construções milenares, essas linhas lembram – mais do que as necessidades

de sustentação das construções – o traçado urgente de alinhamento do

mundo. Escapa-se ao caos reorganizando o visível. Em todas estas imagens,

é a tentação geométrica que se ergue, a relação estrutural que permite a

compreensão, o diálogo. Fora da natureza, da qual há muito se sabe que o

homem não deve a sua melhor e mais sã condição, é no domínio kantiano da

lei, da ordem, do saber – ou do desenho – que a civilização permanece. É

nesse domínio, nessa escrita, que Europa rompe com a baba de Zeus, que

se liberta do raptor e do seu rude desejo, que ressurge da espuma dessa

violência e se ergue para afirmar a sua fala, a sua identidade.


5.

E assim chegamos aos últimos desenhos. Afirmando-se como síntese

do que foi visto, o desenho torna-se residual. Recupera as linhas essenciais

do mundo, reestruturando-o e simplificando-o. As obras patentes nesta

exposição mostram exactamente esse percurso. Primeiro e último, mimando

a circularidade da cobra, metáfora para o eterno, o desenho: geométrico,

como convém à organização racional do projecto, à projecção dos céus, de

acordo com a sua ordem intrínseca, eles surgem compassados na lenta

observação dos movimentos de linhas no espaço. Triângulos, quadrados,

rectângulos, perspectivados numa superfície plana e branca, depurada e

expectante, alinham-se em sucessão como quem prepara os olhos para

reencontrar essa organização no real. Depois, o que fica na retina: as linhas

orientadoras de tudo o que foi visto. Por isso, estes últimos desenhos contam

já uma outra história. Remetem para o lugar da memória. Mais uma vez, não

uma memória patrimonial, identificadora de monumentos e lugares, mas uma

memória visual pura.

Indo da destruída cidade de Tebas para o exílio, Cadmo não levaria consigo

a memória do traçado das ruas da sua cidade? Dos seus edifícios? Essa

íntima escrita urbana deve ter ajudado ao nascimento do alfabeto. Codificar o

real, na areia de uma praia, frente ao mar cor de vinho (para usar a

expressão homérica), deverá ter sido o primeiro passo para que os sons

passassem também a ter um registo. Então, alfa, beta, gama... As letras

deram o nome ao seu sistema: alfabeto. E embora hoje o digamos já mais

longe da Grécia e ancoradas das nossas letras, a, b, c, d, abecedário, a raiz

permanece a mesma. Foi essa raiz, esse poder, que Cadmo trouxe para o

Ocidente.

Entretanto, Europa tinha-se confundido com o mar. Cadmo, o irmão

que partira em sua busca e que acabou por encontrar e casar com Harmonia,

fundando com ela a cidade de Tebas cujas ruínas teria de abandonar, trarnos-

ia essa fabulosa fortuna. Com ela tecemos a nossa história. Somos ainda

descendentes de Cadmo e Harmonia. Somos os herdeiros de Europa, a

jovem que da Grécia se transformou num continente. Mesmo que já nada

saibamos da geometria dos céus.



Segundo a geometria dos céus


1.

Marguerite Yourcenar escreveu um dia que a natureza avança sobre

as ruínas da civilização. Não terão sido estas as suas exactas palavras, mas

a ideia tranquilizava-a porque sabia que uma casa abandonada cedo seria

invadida por ervas, cedo as paredes cederiam à força das raízes, cedo o

construído daria lugar ao primordial.

Conheço uma casa em Lagos, a cidade onde Sophia mergulhava a

mão na sombra, em que cresce uma figueira. Não cresce do chão, como é

comum nas árvores que dele tentam alcançar o céu, mas de uma parede que

dá para a rua. Em baixo as pessoas passam e são poucas as que param ao

perfume das suas folhas, e até dos seus frutos maduros no fim do Verão.

Temerão que o prédio caia ou estarão demasiado confiantes no poder da

construção? Seja como for, não vêem a figueira. Ela cresce na parede há

vários anos. Todos os anos a saúdo.


2.

A última vez que passei nessa mesma rua em Lagos, a figueira tinha

sido arrancada da parede do prédio, que estava em obras. Não sei em que

lugar me deixar: se na memória do perfume, se na manutenção do traçado do

edifício. Sei que por muito que se recomponha um rosto ele jamais voltará à

infância. Sophia já não passeia por estas ruas.

A Grécia é muito longe daqui.


3.

O sinal de obras é gráfico e revela construções e uma mão num

reflexo da imagem. Não a mão que o desenhou, também não a que

fotografou o sinal, mas uma mão que é também um outro sinal. Lembro-me

imediatamente de uma outra mão, marcada como um stencil numa gruta há

milhares de anos. Era uma mão aberta. Esta é fechada. Esta é a mão que

aperta o instrumento. A outra tinha de ser aberta, porque era o próprio

instrumento.


4.

Estas escadas não levam a lugar algum. São lisas e novas, um jogo de

linhas que se conjuga com o fino traçado das pedras da parede e com o mais

denso composto do portão. Aonde levam estas escadas? São o puro acto de

subir e descer, a ascensão e a descida, o movimento pendular.

Indefinidamente, infinitamente. As escadas do Escher faziam também jogos

semelhantes. É o triunfo do desenho sobre as limitações da realidade.


5.

As janelas só são os olhos dos edifícios nas composições das

crianças. Os adultos não costumam ter essa capacidade de ver. Perdem-na

enquanto ganham outras coisas. Dinheiro ou juízo, ou ambos; ou nenhum

deles. Perdem-na como perdem o acesso ao pensamento mágico, como

perdem a capacidade de ouvir o ruído perturbador dos céus nocturnos. Mas

talvez o exercício do desenho, que opera também como as janelas, no

mesmo jogo de quem oculta para revelar, e de quem revela para ocultar, seja

a porta mágica para voltar a encontrar os olhos dos edifícios, os pontos de

observação e de afecto que nos permitem abrir os braços à paisagem, ao

outro.


6.

Também já não vemos a paisagem sob a chuva tal como Turner.

Habituámo-nos a andar de comboio, até de avião. Vemos tudo a uma

velocidade maior, mesmo quando estamos parados. Percebemos as formas

porque já as conhecemos. E sabemos que a mancha amarela que passa

velozmente é o metro. O olho mecânico da máquina retoma aqui o papel

perdido da inocência.


7.

As figuras encaixam-se na quadrícula da imagem como mais um

fragmento. Organizadas quase em jeito neo-plasticista. Quase em citação de

Mondrian, com as suas superfícies racionais onde apenas pontificam cores

puras e as antigas não-cores.

Só as presenças humanas alteram o ritmo da imagem, introduzindo consigo

um ténue elemento de perturbação.

Parte de uma parte, elas mantêm intacto o mistério. Nada nas imagens

é explícito, nada conta inequivocamente uma história. Nada do que vemos é

apenas o que vemos.


8.

C. vai na direcção de um espaço oculto. Irrevelado. Não há sinais da

espuma de Afrodite, nem sequer maciços de narcisos. Não tememos,

portanto, que por ali apareça Zeus, disfarçado de touro, para seduzir Europa

e a raptar com um gorjeio de prazer, levando-a na garupa para longe, a fim

de consumar o desejo. Como não receamos que a terra se abra, para que

dela saiam, negros como a noite, os corcéis que puxam o carro de Hades,

pronto a agarrar Core e a levar consigo para o reino dos mortos. Não

tememos nenhum dos deuses, mas continuamos a temer os seus efeitos.

Mesmo com imagens tranquilas, uma porta fechada é sempre um mistério.

Um caminho cujo horizonte é inquietantemente impenetrável e próximo deita

sempre uma sombra, uma dúvida.

Os deuses desapareceram mas continuam presentes. Na cobiça que

sentem pelos humanos, nas histórias que depois deles continuaram a ser

contadas.


9.

Hélio é o que tudo vê. É ele que diz a Deméter que a filha, Core, foi

raptada pelo tio, Hades, enquanto colhia narcisos num campo isolado. É

assim que Deméter sabe que tem de recorrer a Zeus, para recuperar a filha.

Luz no meio da escuridão, o sol, que tudo vê, apenas revela. Não age. E nem

sequer o podemos olhar nos olhos.


10.

O equilíbrio foi um dos principais sonhos dos gregos. Em Delfos, no

mesmo templo em cujo frontão se lia a máxima para sempre atribuída a

Sócrates, Conhece a ti mesmo, moravam alternadamente dois deuses. Apólo

e Diónisos. A repartição do tempo entre os dois era feita de modo

aparentemente desigual: nove meses para o primeiro, três para o segundo.

Mas os gregos sabiam que a razão pode ser sustentada por mais tempo que

a loucura. Diónisos é o deus celebrado na época das colheitas. Todos

sabem, porque Aristófanes o contou, como eram loucas as mulheres

embriagadas, tomadas pelo ânimo do deus, que celebravam as Tesmofórias,

essas festas afogadas em uvas pisadas. Por isso, o deus lunar, o deus da

desmesura, tinha só três meses num ano. O resto do tempo, podia brilhar,

intenso e solar, um outro deus mais comedido.


11.

Deixámos há muito de ouvir as estrelas. A maior parte de nós,

provavelmente, nem sabe que elas alguma vez tiveram voz. Perdeu-se

também a noção desses céus organizados de modo geométrico, sobrepondose

racionais e múltiplos, numa ordem que os esclarecia. Também deixámos

de ser o centro do universo. Perdemos até deus, e ficámos sozinhos. No

universo provavelmente infinito, provavelmente finito, seguramente dotado de

muitas dúvidas, resta a geometria. Uma dádiva tão dotada de mente como

qualquer outro alfabeto.


12.

O olhar é fugaz. Ou talvez andemos demasiado depressa para que as

formas sejam claramente vistas. Assim as linhas se transformam em texturas.

Percebemos o que viram Duchamp, Boccioni. O movimento também pode ser

um fragmento. Tanto no tempo como no espaço.


13.

Que luz terá alumiado o território onde se ergueu Tebas? A

organização dos céus foi repetida sobre o solo, e a cidade ergueu-se serena

e harmoniosa, como um corpo celeste. De Tebas essa herança veio para o

Ocidente, tesouro maravilhoso que partilhou viagem com os despojos da vida

de Cadmo e Harmonia. Mas não é sempre assim com as heranças?

Durante séculos, o desejo de clareza perseguiu os sábios e os monges

copistas, iluminando livros como se as letras, lentamente desenhadas,

lançassem luz sobre as páginas, também esclarecidas por pinturas a oiro e

carmim.

Diz-se de alguém com alma clara que é possível lê-lo como a um livro

aberto. O alfabeto fundiu-se nas nossas células. Somos o que lemos. Assim,

mesmo sem pronunciar o seu nome, reerguemos Tebas das ruínas e

celebramos o seu prodigioso legado.


14.

O horizonte fecha-se sobre Core, quando a terra volta a cerrar-se após

a passagem do carro de Hades. Lá em cima, à superfície, o clarão de Hélio

turvou-se de sangue. É o sangue sacrificial de Core que passará a chamar-se

Perséfone depois de consumadas as núpcias infernais.

No Hades tudo é negro e morte. O negro é também opacidade e

ambiguamente finito e infinito. Morada do abissal, ele significa o ocaso, o luto

absoluto. Como se pode amar nas vizinhanças do Tártaro, o rio apenas

habitado por almas? Breves sombras do que antes foram corpos, elas são

como riscos vestigiais num quadro.

Mas Hades quer apenas essa mulher, a mulher que colheu quando ela

colhia narcisos, a flor criada pelos deuses para lembrar o jovem que, incauto,

morreu de amor e solidão.

Sobre esse mundo de silêncio, Hélio dirá a Deméter onde se encontra

a filha raptada. Deméter conseguirá convencer Zeus a ajudá-la a recuperar

Perséfone. Mas, antes de sair do Hades ao encontro da mãe, a jovem

quebrará o jejum dos infernos, comendo três bagos de romã. Rubros. Cor de

sangue e de fogo.


15.

A espiral é o tempo, a mão que risca. A linha é o vestígio da mão. O

indício do desenho. Do mesmo modo que só à noite é possível ver as

estrelas, os opostos esclarecem-se mutuamente. Só sobre o negro a luz é

tangível. Um risco que olha para si mesmo, que se recolhe em casa olhando

para a própria alma.


16.

A música tem alma matemática. Não só porque as cordas das liras são

exactas nas medidas para que tudo saia de acordo com a sonhada harmonia.

Mas porque deverá, certamente, sussurrar alguns dos segredos arcaicos do

canto das esferas.

Uma janela fechada talvez faça ouvir melhor o que dentro de nós pode

ainda ressoar os cantos de então.


17.

Virada para o céu a estrutura repete a harmonia dos traçados celestes.

As linhas paralelas dão-se bem com o infinito.


18.

Era no alto dos nimbos que os deuses se sentavam. Para lá das

nuvens ficava a imortalidade desses seres.

Um dia, quando os imortais se entregaram ao esquecimento e outro

deus, maior e ominipotente, eterno e omnipresente, surgiu no horizonte, foi

num nimbo que também descansou a sua presença. Porém, se olharmos

bem para as nuvens, para lá do branco ou do negro, a caminho do infinito

azul, ainda poderemos ouvir as vozes inquietas dos olímpicos, turvando o

trovão do deus uno que se apropriou do lugar e do raio de Zeus.


19.

Todos os elementos da construção remetem para a racionalização que

o arquitecto projectou. Tudo o que ele pensou se corporizou. Mas nem por

isso são menos nítidos o pensamento e o gesto. Não é visível que a mão

passou por aqui?


20.

A organização repete-se também na cidade dos mortos, nas últimas

moradas onde o corpo se entrega a regressar ao infinito e a alma se detém

noutras demandas. Tal como não vemos a totalidade da vida não

testemunhamos a totalidade da morte. Mesmo perante o insondável

alinhamos o pensamento. Os céus ganham assim um espelho perfeito,

mesmo que em mil estilhaços. Mesmo que num breve fragmento. O único

absoluto que encontramos não é o da memória dos viventes, do testemunho

da sua passagem que para nós permanece na sombra. É o da geometria.

Vitória da razão sobre o abismo.


21.

Quando Dédalo construiu o labirinto para nele ser preso o monstro

devorador de jovens, decerto nunca suspeitou que um dia ele e o filho teriam

idêntico destino ao do Minotauro, aí sendo confinados. Como nunca terá

sonhado que as suas asas para a liberdade custariam a vida do jovem Ícaro.

Por trás de um muro há sempre florestas e monstros. Sonhos altos e o seu

altíssimo custo.

Por trás de uma porta fechada o ronco do assombro. Podemos passarlhe

em frente e seguir, no caminho mais tranquilo, ou quedarmo-nos face ao

mistério e exigir-lhe resposta. Será que a porta se abre?


22.

Core sai de casa numa manhã esplendorosa. Combinou com as

amigas um passeio ao campo para colher narcisos. Deméter, a mãe, é a

deusa que rege tudo o que sobre o solo brota. As árvores, os cereais, as

flores. Deméter não tem mais motivos para se preocupar que qualquer outro

deus do Olimpo. Core é uma jovem e nada perturba o seu desejo de um

perfume.


23.

Para longe partem as amigas, determinadas a apanhar o máximo de

flores. Ao longe, no meio do campo, Core vislumbra um maciço mais viçoso

e, sem dizer nada às companheiras, arrisca-se pelo verde. Hélio, o sol, espia

lá no alto. Tudo vai bem, mesmo na estranha calma que antecede a

tempestade. Depois, já sabemos: de repente a terra abre-se e Hades

arrebata a jovem para o seu carro puxado por quatro cavalos de breu. É tudo

muito rápido. Logo se precipitam em direcção às profundezas e a terra fechase

em seu redor. Não há mais testemunhas para além da já citada.

As jovens não sabem como explicar a Deméter que perderam a amiga.

Deméter não sabe explicar a si mesma como desapareceu a filha. Pede

ajuda. Deambula pela terra, perde interesse pelas suas obrigações. Eis que o

mundo definha. As árvores perdem as folhas, os cereais amadurecem e

secam, as flores murcham. Até o canto das pássaros cessou. É então que

Hélio se torna solidário. E diz o que se passa. Deméter parte em busca de

auxílio. Zeus interfere. Negoceia com Hades. A jovem, mesmo com núpcias

consumadas, tem de voltar para junto da sua mãe. Hades concede. Assim

será. Mas será?

Hades não resiste à companhia de Perséfone. Quer tê-la sempre a seu

lado. E embora tenha dado a sua palavra a Zeus, urdirá um estratagema.

Antes que a jovem regresse para junto da mãe, dá-lhe a comer três bagos de

romã. Ela engole-os sem pensar.

Ao ver a mãe, abraçam-se felizes. Mas também Deméter sabe que os

deuses são invejosos. Também ela sabe que a felicidade nunca é total e

perfeita, que eles espreitarão os seus como espreitam e punem os humanos.

Diz-me, filha, comeste alguma coisa? E Perséfone diz que sim.


24.

Deméter sabe que o quadro jamais poderá ser visto por inteiro. Por

isso, o ano passou a estar dividido em duas metades. Zeus é chamado a

arbitrar a questão e delibera: metade desse tempo passará Perséfone no

Hades, com o seu divino esposo. A outra metade, à superfície, com sua mãe.

Quem poderá criticar Deméter por apenas se deixar rejubilar seis

meses num ano? Mesmo que a nossa ciência divida a narrativa de outro

modo, nós sabemos. No equinócio de Março, é então essa porta que se abre.

Janela aberta sobre um jardim, a terra festeja enfim o reencontro de mãe e

filha. Nós demos-lhe data exacta: 21. E nome único: Primavera.

Depois, passam seis meses de bonomia. E no seu termo, quem pode

censurar a Deméter que volte a desinteressar-se? Também esse momento

tem ponto exacto: 21. E mês próprio: Setembro. E nome único: Outono.

Quando a terra se abre e Perséfone regressa ao Hades, Deméter anoitece. E

tudo em seu redor.

O quadro jamais poderá voltar a ser inteiro. Por isso mesmo é tão doce

e grave o sabor da romã.



Duas águias de oiro


Os aviões são ás águias de oiro do colar de Harmonia. As duas aves

que impedem a mordedura das duas serpentes que compõem o corpo do

colar. As aves impossibilitam o enlace fatal dos répteis, o anel mortal do

tempo, a consumação do ciclo perfeito e, simultaneamente, o desastre, o

regresso ao caos. Também os povos índios da América do Norte acreditam

que a luz do dia tinha sido ganha num combate mortal entre répteis e aves do

qual estas tinham saído vencedoras. Por isso, em sua honra, usavam

toucados de penas.

Os aviões, mesmo com biografias de guerra, também são guardiões

de paz. Mas hoje, no fundo do nosso medo, eles simbolizam constantemente

outras perdas.

Eis mais uma metamorfose. As águias transformadas em aviões já não são

as aves salvadoras. Lá dentro, no seio do corpo metálico, somos Ícaros

esperando não chegar demasiado perto do sol. Há sempre os que temem

desafiar os deuses. Por muito alto que sonhem.

À parte esse medo de sempre, o que hoje nos prende é a possibilidade

de sermos reféns de outros cavalos de Tróia. No ventre dessas águias

enormes somos presas fáceis. Incapazes de voar pelos nossos próprios

meios, ficamos à mercê da perícia de uns e da desmesura de outros. Não há

fios que nos segurem. É o regresso das Erínias.



Em direcção a Ocidente


A casa estrutura-se de acordo com um programa.

Programar é antecipar os problemas, encará-los com resoluções que

dividem o espaço de acordo com as funções necessárias. Espelho do corpo e

da cultura, a casa reage à quadrícula, ao fragmento.

Aqui temos o fogo, sagrado ou profano, o do alimento da alma e o

mais prosaico, da nutrição do corpo. Aqui nos reunimos para celebrar a

palavra. A mesa é altar divino mas também civilizacional. Aqui festejamos a

organização do alfabeto. Aqui abrimos livros, lemos, escrevemos,

desenhamos.

Aqui fazemos as abluções, aqui dormimos, aqui amamos, nos

perdemos de nós para no outro nos reencontrarmos. Aqui guardamos os

nossos tesouros, letras perdidas, ecos de palavras, afectos, mortes,

esquecimentos. Os instantes de uma vida cabem todos aqui, no umbigo do

mundo, no cenário dos nossos actos.

O que recordamos, porém, o que narramos é sempre parcial, apesar

da sequência lógica. São os acidentes que na matéria ficam inscritos. Não

apenas o mal, mas os obstáculos, a resistência à morte. Foi essa a

continuidade que permitiu a chegada ao Ocidente, o seu enraizamento, a

permanência. Esta é casa de deus no Ocidente. Longe do Olimpo, como

longe de Tebas, os deuses plurais e fecundos têm um rosto uno, mesmo que

o mistério lhe atribua três lugares no céu. Compreender ou chegar lá pela fé,

eis tudo.

No final, tudo se resume a algo essencialmente muito simples.

A casa – seja a de deus ou do homem – estrutura-se sempre de

acordo com um programa.



Dádivas dotadas de mente


Sartre escreveu, cinicamente, que o inferno são os outros. Referia-se à

impossibilidade de escaparmos ao juízo dos outros, fazendo da consciência

uma obrigatoriedade. Não posso ser como quero, fazer tudo o que me passa

pela cabeça, sob pena de padecer as duras penas da responsabilidade e da

lei. Os outros são uma consciência imposta, uma repressão sobre o eu.

No entanto, os contadores de histórias, os inquiridores do mundo, os

espíritos mais inquietos e benfazejos, fazem também parte do outro.

Husserl, que dominava menos o floreado do verbo do que Sartre, mas

que era mais íntimo da emoção do logos e dos segredos da sua partilha,

sabia que não era assim. O outro não é o inferno. É quem se chega ao pé de

nós junto ao fogo para desfiar o fio narrativo. O outro, como qualquer letra do

alfabeto, só funciona num código múltiplo, num jogo de encontros e

desencontros, de um tecido que, mesmo rasgado e em farrapos, continua a

trazer a memória das carícias à nossa pele cansada.



[FERREIRA, Emília, “No princípio era o desenho”, in catálogo da exposição

Cadmo e Harmonia, Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea,

Almada, Setembro de 2007]