[Manuel Valente Alves, “Donde vimos? O que somos? Para onde vamos?”, 1996]

DONDE VIMOS? O QUE SOMOS? PARA ONDE VAMOS? por Raquel Henriques da Silva

II faudrait que je le trouve le sens avant de commencer.

Marcel Duchamp in Pierre Cabanne, Entretiens avec Macel Duchamp. 1967.

L'artiste est inconscient de ce qu'il fait, l'artiste ne sait pas ce qu’il fait.

Marcel Duchamp, cit. por Thierry de Duve in Duchamp. Colloque de Cerisy, 1979.

As duas citações de Duchamp que escolhi para epígrafe desta apresentação podem parecer (são?) contraditórias, de acordo aliás com a postura de ocultação que foi sempre a do seu autor: aparentemente, "o sentido antes de começar" tiraria ao artista a celebrada inconsci­ência do estado de inspiração, esfriando-o, melhor conceptualizando-o. Mas a verdade é que "encontrar o sentido" é uma atitude inicial, delimitadora talvez de um território que, no próprio fazer, ganha autonomia e gera um real resistente e questionante. O "sentido" lá estará (ou não) mas a coisa, na sua espessura objectual, não é só uma ideia, faz o seu caminho, confronta-se com a memória do criador e cruza-se, polissemicamente, com a memória (os corpos e a História) dos outros que dela se aproximam. Creio que só neste espaço o objecto ou a situação plástica adquire o(s) "sentido(s)" últimos, na verdade os primeiros de uma cadeia que outros olhares sempre renovarão. Com a reflexão e/ou com os afectos.

Este ponto de partida foi-me sugerido pelas intencionalidadcs, assumidamente enunciadoras e descritivas, da instalação de Manuel Valente Alves. Propõe ele uma verti­gem controladíssima de contaminações, na continuidade de toda a sua prática que agora se aprofunda pela sistematicidade do uso da citação. Para um lugar que assume uma sala de Museu convoca três personalidades que nunca se poderiam ter cruzado: Giorgione, através da sua célebre A Tempestade de 1509, Paul Gauguin, através do título de uma obra ausente de 1897, Bernard Hermann, através de uma fotografia que enquadra um texto de John Barry, publicado na Newsweek em 1995.

Cita-os pois mas com uma subtil variabilidade. Giorgione, copiado em formato igual, é uma réplica oficinalmente construída sobre tela mas usando o acrílico e não o óleo como meio, o que impõe uma não evidente alteração de matizes e tons. E sobre a superfície da caixa de vidro que contém a obra instala-se uma perturbação desviante: não é A Tempestade mas Future Shock que a designa. Quanto à fotografia, a sua ampliação e isolamento do corpo da revista, que antes a normalizava, envolve-a numa cenografia, desviante também. Forra-a uma moldura de outdoor e chama-se Tempestade. Sozinho, reduzido à letra, o título do quadro de Gauguin evocará para o amador o seu esplendor mas torna-se outra coisa: tão só o "sentido" organizador deste puzzle de citações cruzadas, desenrolando e miscigenizando funções, poéticas e técnicas. Ou seja, reinscrevendo-as num novo lugar que é o do próprio Valente Alves.

Por isso esta instalação, na sua clareza expositiva, é uma construção de terceiro grau: o primeiro definido pelas obras em si - um óleo, uma fotografia impressa em folha de revista, um título - , o segundo pelas apropriações que as reconstituem - os modos de apresen­tação, a troca de legendas, a descontextualização da frase de Gauguin - o terceiro, finalmente, pelo significante que as une, recarregando todos os anteriores: o mundo é ameaçante mas o cerne dessa ameaça é na acção devastadora do poder que se concretiza.

Esta deliberada mensagem constitui-se todavia como enunciado complexo. Se a fotografia da Newsweek tem a limpidez avassaladora das imagens que varrem o nosso quotidi­ano e a frase de Gauguin proclama, retoricamcnte, uma espécie de intrínseca ontologia da Histó­ria, A Tempestade de Giorgione propõe-se como metáfora intrigante. E embora Valente Alves a envolva, no texto do Catálogo, de uma chave iconográfica recente e convincente - a tempestade da natureza seria apenas o símbolo das lutas políticas da Itália retalhada entre tardios condottieri - a pregnância figural da memória do seu pré-naturalismo erudito proporciona ao espectador o nostálgico confronto entre os ritmos orgânicos da destruição - um súbito raio que ameaça a paisa­gem intocada e uma humanidade pura - e a perversão tecnológica da bomba onde a ausência de gente só acentua a evidência da morte. O que permite ao autor sugerir que foi a História recente que transmutou o ameaçante do mundo em situação ameaçadora, utilizando Gauguin como repto às duas situações, simultaneamente grito existencial histórico e angustiada interpelação da barbárie presente. Ou de outro modo: não é o escândalo de nada sabermos que se contesta embora se o evoque - mas o risco de não podermos continuar a indagação.

Com este trabalho prossegue Manuel Valente Alves um dos mais insistentes percursos da actualidade. Anular margens entre pintura c fotografia, e entre as imagens apropria­das de uma e outra, disseminar sentidos e poéticas, seleccionar e transpor meios plásticos, inscre­ver e transmutar sucessivas realidades num real outro que interroga as suas próprias transposições, ressituar a prática artística num espaço cultural amplo em que a palavra é um elo significante, e desse modo dotá-la de intencionalidade política, social e ecológica, tornam-no um encenador de uma dramaturgia celebrante e interventiva. Onde a público pode encontrar sinais de reconheci­mento de si mesmo e da sua situação. E um repto para a acção.

Retomando a epígrafe inicial, Manuel Valente Alves parte, como pretendia Duchamp, de uma forte determinação de "sentido" "antes de começar" mas a sua discursividade é um lugar aberto, experiencial e arriscado, cujos anéis se organizam fusionalmente e cuja espiral, como palimpsesto vertical, ele já não pretende controlar. Que esse lugar de constituição e repre­sentação se instale num espaço de museu tradicional enuncia-se como última e silenciosa questionação: como manejaremos a nossa vide e poderemos assegurar a dos nossos mortos?

[HENRIQUES DA SILVA, Raquel, “Donde vimos? O que somos? Para onde vamos?”, catálogo da exposição Donde vimos? O que somos? Para onde vamos?, Museu do Chiado, Lisboa, Junho de 1996, português/inglês]