[Manuel Valente Alves, “Primitivos”, 1986]

PREFÁCIO por Pedro Tamen

Pintura é coisa grave, que não se compa­dece com a gravidade enchapelada de alguns que a julgam ver — e que é afinal a forma mais grotesca da ligeireza. Ocorre-me isto com muita nitidez diante desta última série de trabalhos de Valente Alves porque, a meu ver de modo exemplar, ela repudia a facilidade e impõe ao espectador um grau de exigência tão apurado como aquele que começou por devorar o próprio pintor.

Frente a estes quadros, senhores, só se conquista a felici­dade do gozo a pulso de muita e activa contemplação. A guloseima visual (e táctil) desta pintura simultaneamente rica e despojada apenas nos é oferecida após um esforço nos­so de higiene e pobreza, suscitador de uma sede nova que vá depois sofregamente absorver cada forma, cada man­cha, cada empastamento ou raspagem. Cada vestígio vivo da paixão do pintor.

De primitivos fala Valente Alves. E, na verdade, reconhe­cem-se símbolos e formas próprias de uma arte que em dado momento deu a volta à cabeça da arte moderna ocidental, virando-a simultaneamente para Avinhão e África. Mas atrevo-me a pensar que não é isso o que estes quadros têm de mais primitivo — antes a inaugural pureza dos gestos que os cria­ram e dos olhos que exigem.

[TAMEN, Pedro, “Prefácio” in catálogo da exposição ”Primitivos”, Galeria Clube Cinquenta, Lisboa, Março de 1986]