[Manuel Valente Alves, “Vitória de Samotrácia”, 1996]


VITÓRIA DE SAMOTRÁCIA por Manuel Valente Alves

A “Vitória de Samotrácia”, obra prima da escultura helenística, é representada no momento em que põe o pé sobre a proa de um navio para proclamar o triunfo. Com as asas despregadas, semi-sustentada pelo poderoso vento frontal, contra o qual irrompe, esta figura celebra o espírito imperial característico da época – século III/ II a.C. –, marcada pelo expansionismo helénico e romano.

1.

O fim do século XIX e o começo do século XX testemunharam o domínio sem precedentes dos europeus sobre os não-europeus. A debilidade dos velhos sistemas imperiais (principalmente o austríaco, o otomano e o chinês), com as consequentes rivalidades diplomáticas, tinha favorecido a expansão colonial de países como a Grã-Bretanha e a França. A repartição da África na “contenda” de 1880-1914 constituía, antes de mais, um problema de rivalidade entre as grandes potências da Europa. Por isso, a nova geografia política tinha uma tão fraca correspondência com a realidade africana.

2.

Em 1914 somente os territórios da Abissínia e da Libéria constituíam Estados independentes em África. Os restantes pertenciam à França, Grã-Bretanha, Alemanha, Portugal, Bélgica, Itália e Espanha (a África do Sul foi criada em 1910, mas sob controle de uma minoria branca). O Egipto obteve a sua independência em 1922; quase todos os restantes territórios obtiveram a independência durante o surto independentista dos anos 50, 60 e 70. Contudo, este estrondoso clima independentista, fomentado pela aparição no pós-guerra de novas superpotências (EUA e URSS) interessadas em criar uma nova ordem mundial, teria consequências absolutamente catastróficas: exceptuando o caso da África do Sul, a imensa maioria dos povos a sul do Sahara continua a ser quotidianamente devastada pela fome e pela guerra em sanguinários confrontos. Na origem dos conflitos, em geral activados por problemas coloniais recorrentes – má distribuição das terras, rivalidades étnicas e raciais, divisões religiosas – estão quase sempre os interesses económicos dos países do hemisfério norte, agora agarrados a um único modelo de desenvolvimento (depois da ruinosa experiência comunista do leste) que gerou, para utilizar uma expressão de Max Weber, um “mundo desencantado”. Trata-se do capitalismo liberal que, incapaz de oferecer bem-estar para todos, promove as desigualdades – nos últimos 30 anos a distância entre os países ricos e pobres aumentou cinco vezes – fazendo eclodir a conflitualidade social. O assassinato em massa, rigorosamente planificado, de quase um milhão de pessoas no Ruanda, em 1994, que originou o êxodo em massa de quase dois milhões de refugiados (uma das mais sangrentas catástrofes da história da humanidade, com a cumplicidade silenciosa da comunidade internacional) explica claramente o horror que se vive em África. Nos últimos anos, mais de seis milhões de africanos viram-se forçados a deixar os seus países, e muitos outros foram perseguidos ou expulsos de suas casas, convertendo-se em refugiados internos.

3.

Porém, este clima ruinoso, tanto do ponto de vista humano como ecológico, não parece constituir obstáculo para o desenvolvimento de novas e crescentemente sofisticadas (violentas) formas de colonialismo. O jornal francês Le Monde, na sua edição de 10 de Agosto de 1995, destaca, com base num estudo realizado pelo Serviço de Investigação do Congresso Americano, a importância do comércio de armamento nas estratégias políticas e económicas dos denominados “países desenvolvidos”. O artigo é elucidativo: “As vendas de armamento a países do terceiro-mundo, que constituem 70 por cento do conjunto do comércio de armamento do planeta, representaram em 1994 um volume de quase 25 biliões de dólares. Apesar de ser considerada ‘fraca’ em relação a 1993 (25,4 biliões contra 25,5) a queda registada confirma a tendência para a diminuição, constatada desde o final da Guerra Fria”. Conclui: “Sublinhando as vantagens que derivam no âmbito económico interno, a administração Clinton continua fazendo das exportações de armamento um dos elementos fundamentais da política comercial, e em geral da sua diplomacia”.

Esta instalação evoca a célebre escultura associando-a a acontecimentos recentes da história da humanidade relacionados com o fim do imperialismo, abrindo, deste modo, um espaço de reflexão em torno da realidade africana actual e o conceito de ruína (civilizacional) que lhe subjaz.






[VALENTE ALVES, Manuel, “Vitória de Samotrácia”, in catálogo da exposição “Observatório – Fotografia Contemporánea Portuguesa”, Canal Isabel II, Madrid, Fevereiro/Março de 1998]