[Manuel Valente Alves, “Et in Arcadia Ego”, 1995]

ET IN ARCADIA EGO por Manuel Valente Alves

1.

“ESTÃO A SURGIR DEPÓSITOS DE LIXO ILEGAIS, ESTIMULADOS PELO ENCERRAMENTO DE ATERROS SANITÁRIOS E POR UM MINI-BOOM NA CONSTRUÇÃO CIVIL. A PROPOSTA DE UMA NOVA TAXA DEVERÁ AGRAVAR AINDA MAIS A SITUAÇÃO. A RECENTE DESCOBERTA DE RESÍDUOS NUCLEARES NUMA QUINTA DE NORTHAMPTONSHIRE PODERÁ SER A PONTA DO ICEBERG.”

“DEFENDIDOS PELA LIVRE CIRCULAÇÃO NAS FRONTEIRAS DA EUROPA COMUNITÁRIA, CAMIÕES CARREGANDO EURO-RESÍDUOS PODEM ENTRAR NO PAÍS COM RELATIVA FACILIDADE.”

Estes dois dos títulos do guia londrino Time-Out, em fins de Janeiro de 1995 - na semana seguinte à inauguração da excelente retrospectiva de Nicolas Poussin, na Royal Academy of Arts, em Londres.

2.

A relação entre Poussin e a notícia da descoberta de resíduos nucleares, numa quinta Inglesa, surgiu-me na exposição, frente a dois famosos quadros do pintor sobre os pastores da Arcádia. A intrigante frase latina “Et in Arcadia ego”, inscrita no sarcófago representado nas duas pinturas de Poussin, fez-me lembrar os dois títulos que, naquela manhã, ao folhear jornais e revistas do dia, me chamaram a atenção.

Para Erwin Panofsky, “Et in Arcadia ego”, gramaticalmente falando, significa “A morte existe até na Arcádia”. A Arcádia é uma região pobre e seca do centro da Grécia que se tornou, pela pena de Virgílio, um modelo do paraíso. Ovídio descrevia os arcadianos como “selvagens primitivos”, uma espécie de bestas que ignoravam a arte; Políbio, o mais famoso filho da Arcádia, descrevia-a como “pobre, nua, pedregosa, fria, desprovida de todas as amenidades da vida e podendo dificilmente sustentar umas tantas e magras cabras”. Por aqui se vê a discrepância entre a visão idealizada de Virgílio e a verdadeira Arcádia, rude e severa, descrita por Ovídio e Políbio, mais próxima da tragédia do que do idílio. Na verdade o que Virgílio fez foi criar um conceito, uma utopia que lhe permitisse pensar o mundo, baseado nas suas contradições.

3.

Foi, provavelmente, a partir de um quadro de Giovanni Guercino, de 1618, representando dois pastores que contemplam a descoberta de um túmulo, encimado por uma caveira, com a inscrição “Et in Arcadia ego”, que Poussin compôs as suas duas pinturas sobre a Arcádia. Uma foi realizada por volta de 1628-29, a outra de 1638-40. Em ambas três pastores e uma pastora descobrem um sarcófago na Arcádia, onde à semelhança do túmulo do quadro de Guercino, se pode ler a inscrição “Et in Arcadia ego”. Na primeira versão a estrutura do quadro apoia-se em quatro diagonais - a linha do horizonte, a das árvores, a do túmulo e a do grupo de pastores -, que se intersectam num elemento central - o pastor que aponta a inscrição. É nesta estrutura que Poussin enquadra o processo narrativo e simbólico característico do quadro: uma acção dividida em quatro tempos. O pastor que se debruça sobre a inscrição, procurando decifrá-la, é o pico da acção - a maturidade - a partir da qual se inicia o declínio; o declínio é representado pelo pastor que se queda, melancólico, à direita do quadro, vertendo a água contida num vaso; a jovem seminua, que se insinua à esquerda, representa a sensualidade e o amor, o mais primitivo (e iniciático) contacto do ser humano com a ideia da vida (e da morte); à direita da jovem, o pastor, surpreendido com a descoberta, estabelece a ligação entre o primeiro e o terceiro tempo; a caveira sobre o túmulo simboliza obviamente a morte.

Poussin introduz, deste modo a dimensão temporal nesta pintura, duplamente afirmada pela paradoxal presença da morte na Arcádia, e pela acção que no cenário decorre. A gama de cores restrita, entre o castanho e o laranja, evocando o crepúsculo e a pincelada enérgica e expressiva, sublinha convenientemente as características retóricas.

O segundo quadro é, em oposição ao primeiro, radicalmente inexpressivo e intemporal. À acção característica do primeiro, Poussin contrapõe, no segundo, a estaticidade e o equilíbrio clássicos - a paisagem primordial, o túmulo no centro do quadro, a estaticidade reflexiva dos pastores e a paleta sóbria criam uma atmosfera de intensa beleza e serenidade propícia à meditação.

Este segundo quadro é, talvez, o mais conhecido de Poussin. Faz parte da colecção do Museu do Louvre, tendo inspirado numerosos artistas no século XVIII e XIX. Cézanne, por exemplo, foi um dos seus mais entusiastas admiradores, tendo até uma reprodução sua pendurada no atelier de Aix-en-

-Provence.

4.

Os Pastores da Arcádia” de Poussin são também - podemos afirmá-lo agora - paradigmas da moderna publicidade, nomeadamente nas situações em que a palavra é utilizada (também) como elemento visual. Em Poussin a palavra é ela própria imagem, imagem da imagem, o que serve, não só para a conotar com outras imagens (como na publicidade), mas para lhe aumentar a densidade poética. Uma mesma frase circula em diferentes contextos, definidos, não só pela ideia do cenário (que é sempre o mesmo, o da mitologia Arcádia), mas pela acção (ou não) que no cenário decorre. “Et in Arcadia ego” tanto pode significar, no primeiro quadro, que a morte se instalou definitivamente na Arcádia (transformando-a num paraíso irremediavelmente perdido), como, mais poética e realisticamente no segundo quadro, que quem ali está sepultado nasceu, viveu e morreu na Arcádia, passando, deste modo, a fazer parte da própria natureza arcadiana, uma natureza também ela humana. Curiosamente, o contraste, no segundo quadro, entre os pastores seminus e a jovem “ataviada à antiga”, levaria Claude Lévi-Strauss a interpretá-la como representando a Morte (ou o Destino), sob a “aparência lisonjeadora” da mulher, uma “irrupção do sobrenatural” na paisagem.

5.

Esta conturbada natureza arcadiana de Poussin (e de Virgílio, Ovídio e Políbio) conduz-nos também a outras questões, como a separação entre o bem e o mal, o limpo e o sujo, a saúde e a doença, o masculino e o feminino, a civilização e o primitivismo. Questões de sempre, é certo (reflectem a trágica condição humana), mas que a celebração actual de não-acontecimentos, como Hiroxima, congela num eterno presente sem devir. Hiroxima é, de facto, um não-acontecimento; uma tragédia imensa, sem sangue e sem dor, feita de cinzas que recobrem indelevelmente toda a superfície do mundo. É sob esta superfície que acaba por jazer a única ideia com que podemos pensar o ser humano: a humanidade. Finda a humanidade, não há mais lugar para a lembrança; ou para o esquecimento. (“A história existe como discurso contra o esquecimento” lembrou Eduardo Lourenço, num comentário ao recomeço das experiências nucleares francesas no Sul do Pacífico).

6.

E, voltando aos títulos da revista londrina, que importância têm, afinal, num mundo destes os tais resíduos radioactivos que, “impunemente”, a civilização abandonou num condado da vizinha e próspera Grã-Bretanha, talvez por causa... das liberdades fronteiriças?

O lixo da nossa civilização tem depósitos precisos, estrategicamente localizados, não em Northamptonshire, mas nas “Arcádias” do terceiro-mundo, devastadas pela fome e pela guerra. As ideologias nacionalistas e fundamentalistas (que emergem um pouco por todo lado, como reflexo da crise económica e social em que vivemos) se por um lado defendem desesperadamente o equilíbrio dos seus “jardins”, por outro semeiam, sem complexos, armas e lixo nas “Arcádias” perdidas deste planeta. Os Estados, reduzidos a meros instrumentos ao serviço de uma economia planetária (e panfletária), tornaram-se verdadeiramente as grandes barreiras a qualquer projecto de entendimento (solidariedade) que impeça o colapso da humanidade - repare-se, por exemplo, no vazio das conclusões da cimeira de chefes de Estado em Copenhaga (1985), numa altura em que, mesmo nos países ricos, a legião de desempregados cresce desenfreadamente; o tráfico e o consumo de droga se tornaram incontroláveis; e epidemias como a Sida vão minando os aspectos mais íntimos da vida social. Os estranhos à comunidade são cada vez em maior número, com um peso social que constitui, já hoje, uma importante ameaça à ordem estabelecida. Tornou-se praticamente impossível a qualquer Estado garantir a segurança colectiva e individual dos seus cidadãos.

A incrível proliferação de castas e seitas em países como o Japão ou os Estados Unidos, que ameaça aterradoramente a ordem social estabelecida – recordem-se os atentados de Tóquio e Oklahoma - , significa, tão-só, que a humanidade sofre, moribunda, num presente sem esperança. Nos últimos 30 anos o fosso entre os países ricos e pobres aumentou cinco vezes; e os refugiados no mundo passaram de 1,4 milhões em 1960 para 23 milhões, em 1994 (Le Monde Diplomatique, Fevereiro 1995).

Interrogo-me sobre se tanta miséria acumulada, tantos crimes e tanto sofrimento, não estarão a conduzir a humanidade para um fim trágico, para o suicídio colectivo?

7.

Yves Ternon, médico francês, que conduz desde 1965 investigações históricas em torno dos genocídios, lembra, no seu livro L’ État Criminel (Seuil, 1995) que tudo começa com a perda dos direitos cívicos: “Para se saber quem está protegido ou quem está ameaçado, basta colocar a questão: quem na sociedade conserva uma voz? Todos aqueles em torno dos quais o Estado tem uma obrigação, são preservados; os que são considerados estranhos à comunidade, fora de um universo de obrigações morais, são ameaçados de segregação, de exclusão, de aprisionamento, de expulsão ou genocídio. As técnicas de morte colectiva são as mesmas para todos os grupos, e é evidente que não se podem distinguir os grupos políticos dos grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos.” E termina com um apelo: “Seja qual for, no futuro, a organização da comunidade internacional ela ordenar-se-á no quadro das estruturas estádicas e os estados não poderão permitir que um deles destrua um grupo dos seus cidadãos, não intervindo (...) Que o século XXI não seja, como este século que termina, o tempo dos Estados criminais! (...) A sobrevida da humanidade depende da maneira pela qual o indivíduo for protegido na sociedade pelo poder e pelo direito, no respeito de princípios e valores universais.”

[VALENTE ALVES, Manuel, “Et in Arcadia Ego”, Revista Colóquio Artes, Lisboa, nº 108, Janeiro/Março de 1996]