[Manuel Valente Alves, “Arte da Memória, 1998]

ARTE DA MEMÓRIA por Manuel Valente Alves

O que é que se passa com os homens da cultura ocidental que nos permite manter actividades que ameaçam a nossa própria sobrevivência? O que é tão importante para nós a ponto de mostrarmos, aparentemente, a vontade de destruir o planeta – e afinal nós próprios – para o adquirir? Porque é que continuamos com estas práticas mesmo depois de compreendermos a sua futilidade autodestrutiva? O que é que isto significa sobre a nossa sociedade e sobre nós próprios? Qual é a nossa verdadeira natureza? O que é mais importante para nós? Estará a sociedade em harmonia com a nossa verdadeira natureza e os nossos valores mais profundos?

William Keepin, Revision Magazine

1\ Diálogos

A epígrafe que escolhi é uma das citações com que Suzy Gablik abre o seu livro Conversations before the end of time1, um comentário sobre o estado actual da arte através de 19 diálogos em que artistas, escritores e filósofos se debruçam sobre o significado e o objectivo da arte “numa época de acelerada mudança social e incerteza espiritual”. Inclui também conversas com o crítico Hilton Kramer, o galerista Leo Castelli, o artista de performances Hilton Kramer e o psicólogo James Hillman. (Gablik é autora do livro The Reenchantment of Art2, um importante contributo para a discussão da pós-modernidade na arte e na cultura.)

Na introdução de Conversations before the end of time Gablik justifica este trabalho no seguintes termos: A exposição Bienal de 1993 no Whitney Museu de Arte Americana – a primeira bienal multicultural e política em que foi dado às minorias raciais e étnicas a inteira liberdade de se exprimirem – tornou-se, pelo que pude avaliar das tensões no campo, levando-me para áreas desconhecidas de uma forma aberta e desorganizada, na natureza verdadeiramente fascinante da minha história. A Bienal foi um acontecimento definitivo, e desafiou no seu âmago, a identidade do mundo da arte e o elitismo profissional, colocando o seu espírito rígido e inflexível no fio da navalha.

Gablik procura neste livro defender (na sequência, aliás, de posições anteriormente assumidas em The Reenchantment of Art2, um novo paradigma para as artes visuais, baseado no diálogo e no estreitamento relacional entre a arte e a vida (contrário à lógica modernista): Como nos aproximamos do final do século XX, espero que a prática do diálogo se torne mais largamente reconhecida pelo tipo de harmonia muito especial que oferece: uma trama de pensamentos e pontos de vista que se entrelaçam e se completam. Permitir que a verdade de um assunto surja mão só de um ponto de vista mas sim de muitos, põe em questão qualquer atitude mais fechada: será sempre desestabilizada por uma nova perspectiva. Por esta razão, o próprio processo de diálogo pode, por si mesmo, transformar a visão do mundo de um individualismo complacente e de auto--suficiência radical, porque quando a consciência individual quebra os limites dos seus próprios preconceitos e expectativas, viaja para fora mais livremente, em muitas direcções diferentes.

2\ “Dignidades de Deus”

O que Gablik põe em causa não é somente o modernismo mas todo o sistema de construção e difusão da memória em que se apoia a civilização ocidental.

Repare-se na evolução da “Arte da Memória” ao longo dos tempos, e veja-se como, apesar de algumas inflexões no seu percurso, ela se vai organizando sempre em torno de uma visão unitária, progressivamente estigmatizada da História.

A invenção da “Arte da Memória”, deve-se a Simonides, em 400 a.C. Cícero, que sublinha a importância da ordem na construção da memória, e destaca a visão como o mais penetrante dos sentidos, descreve-a, em De Oratore, como uma das cinco partes da Retórica. Este sistema, baseado no poder evocativo das “imagens” e dos “lugares”, manteve-se durante toda a Idade Média, desenvolvido e aperfeiçoado, entre outros por Alberto Magno e São Tomás de Aquino.

Ramon Lull, no século XIII, veio cortar com a tradição. Nascido em Maiorca em 1235 (dez anos mais novo do que Aquino) Lull logrou, com efeito, criar um sistema lógico e abstracto que rejeitava liminarmente toda e qualquer imagem visual.

Mal aceite na época, o sistema luliano viria a ter sucesso no Renascimento através dos neo-platonistas que, ao associarem-no à tradição hermético-

-cabalística, conseguiram recuperá-lo. Curiosamente, este sistema, apesar de

radicalmente incompatível com o aquiniano, era com ele frequentemente utilizado de forma sincrética.

A “Arte da Memória” de Lull baseava-se num conjunto de “nomes” ou “atributos” de Deus, chamadas “Dignidades de Deus” – bonitas, magnitudo, eternitas, potestas, sapientia, voluntas, virtus, veritas glória – designadas por notação alfabética – B, C, D, E, F, G, H, I, K. Tratava-se de uma arte combinatória, que recorria a um sistema lógico de correspondências (círculos). A sua universalidade decorria de facto de se basear em conceitos – as “Dignidades de Deus” – comuns às três grandes religiões da época – cristã, judaica e muçulmana.

Neste sistema de uso de sinais, notas, caracteres e selos funcionava como uma espécie de “matematização da memória”. Esta noção, defendida entre outros por Descartes e Leibnitz, procurava libertar a ciência da concepção visual do conhecimento, intrinsecamente ilusória, muito em voga no Renascimento. (Recorde-se, a este propósito, o teatro da memória de Giulio Camillo, ao defender que a percepção dos pormenores das imagens era melhor se se andasse mentalmente à volta delas, como se fossem estátuas numa galeria).

Mas como é que, no sistema luliano, a Arte como memória, se distinguia da Arte como intellectus ou como voluntas? Lull, numa alegoria do seu Libri contemplationatis in Deum3 personifica os três poderes do espírito como três nobres e belas donzelas erguidas no topo de uma montanha, e descreve as suas actividades do seguinte modo: O primeiro lembra aquilo que o segundo compreende e o terceiro deseja; o segundo compreende aquilo que o primeiro lembra e o terceiro deseja; o terceiro deseja aquilo que o primeiro lembra e o segundo compreende.

3\ Paisagens

A percepção que hoje temos do espaço (velocidade de comunicação), do tempo (instantaneização) e do mundo (globalização) baseia-se na virtualidade, viabilidade e variabilidade das imagens que habitam o nosso quotidiano. De facto as novas tecnologias, particularmente no campo da imagem, modificaram profundamente o sentido da realidade, inaugurando uma nova era: a era “pós-ontológica”, ou pós-fotográfica, porque a fotografia, antes de se transformar em não-testemunho, alegoria, comentário, ou até mesmo em género artístico, começou por se afirmar como uma técnica que, contrariamente à pintura, permitia objectivar o mundo, atestar a veracidade dos lugares, das pessoas e das coisas fotografadas (recorde-se o célebre noema de Roland Barthes “Isto foi”, em A Câmara Clara4).

À estaticidade da fotografia (tempo “congelado”) sucedeu a imagem digital (sem tempo), infinitamente variável, moldável a um sem número de usos e funções. Este estatuto da imagem reconduziu-a a uma espécie de memória inaugural: a imagem pura, já não pré-simbólica mas pós-simbólica, onde o pensamento especulativo, ideal e abstracto, característico do Ocidente, se pode exprimir com total liberdade.

Parecendo ser um ponto de chegada trata-se, na realidade, um ponto de partida, pois é aqui que se inicia, de facto, o processo de autonomização da imagem que, ao separar-se da experiência da vida, conduz ao aparecimento de novas modalidades de ver, e portanto de sentir e pensar o mundo (a “perversão dos sentidos” de que fala Xavier Rupert de Ventós, no seu ensaio Crítica de la Modernidad5 , é uma consequência desta viragem, como se pode ler na seguinte passagem: “a matéria prima da experiência – a realidade ainda não processada ou interpretada - torna-se cada vez mais escassa. Tal como sucede com a energia, o uso e a exploração indiscriminada do sentido parecem estar a esgotar as suas fontes. (...) O sentido vai introduzindo a perversão dos sentidos.”).

Também centrado nesta problemática, Marc Augé, define em Le sens des autres6 o qualitativo “ambiguidade” associando-o à pós-modernidade (ao contrário do qualitativo “ambivalência”, que liga à modernidade): Afirmar que alguém ou alguma coisa não é nem bom nem mau ou, no domínio dos juízos de verdade, que uma proposição não é nem verdadeira nem falsa, é sair do terreno da ambivalência para entrar no da ambiguidade; é dizer sob uma forma negativa, considerada num dado instante como única possível, algo de positivo que ainda não se deixa qualificar – postular a necessidade de um terceiro termo, sugerir por exemplo que Ulisses não ama nem a guerra nem a sua mulher mas a viagem que lhe permite passar de uma para a outra.

Utilizemos agora estes conceitos para reflectir sobre a paisagem, um dos mais importantes mitos legitimadores da História e do progresso Ocidental: verificamos que ela continua a ser hoje, nesta era “pós-ontológica”, um extraordinário meio para afirmar o domínio, a supremacia do ponto de vista ocidental no mundo.

W.J.T. Mitchell, num artigo intitulado Imperial Landscape7, vai ao fundo desta questão. Parte dos seguintes enunciados (Theses on Landscape):

1 A paisagem não é um género de arte mas um meio.

2 A paisagem é um meio de intercâmbio entre o humano e o natural, o eu e outro. E assim, é como o dinheiro: não tem valor em si mesma, antes expressa uma potencial reserva de valor de fundo.

3 Como o dinheiro, a paisagem é um hieróglifo social que esconde a base real do seu valor de fundo. Ela faz isto naturalizando as suas convenções e convencionalizando a sua natureza.

4 A paisagem é uma cena natural mediada pela cultura. Não é só um espaço de representação mas também um espaço de apresentação, não é só um significado mas também o que significa, não é só a moldura mas também o que a moldura contém, não é só a realidade mas também o seu simulacro, não é só uma embalagem mas também o seu conteúdo.

5 A paisagem é um meio que se encontra em todas as culturas.

6 A paisagem é uma específica formação histórica associada ao imperialismo europeu.

7 As teses 5 e 6 não se opõem.

8 A paisagem é um meio esgotado, inviável como modo de expressão artística. Tal como a vida, a paisagem é um aborrecimento; não devemos dizer isto.

9 A paisagem referida na tese 8 é igual àquela da tese 6.

Mitchell termina questionando a possibilidade de utilizarmos hoje o saber como instrumento de mudança, numa altura em que a pós-moderna colisão “cultura-cultura”, verdadeiro crash-test das políticas globais, veio substituir o tradicional conforto “natureza-cultura” que durante milénios esteve na origem de grandes conflitos da nossa história: Temos conhecimento desde Ruskin, que a apreciação da paisagem como objecto estético não pode ser motivo de complacência ou de tranquila contemplação; pelo contrário, deve ser o foco de uma vigilância - histórica, política e (sim) estética – da violência e dos mal inscritos na terra, projectados pelo olhar da contemplação. Conhecemos pelo menos desde Turner – talvez desde Milton – que a violência deste mau--olhado está inextricavelmente ligada ao imperialismo e ao nacionalismo. O que agora sabemos, é que a própria paisagem é o meio através do qual este se esconde e se naturaliza. Se este conhecimento nos dá algum poder, trata-se aí de uma questão completamente diferente.

Nesta instalação, intitulada Arte da Memória, cruzam-se (e confrontam-se), utilizando caixas de luz como suporte, dois modelos de representação do mundo: o sistema mnemónico enunciado – a memória artificial de Ramon Lull, com os seus nove “nomes” ou “atributos” de Deus e respectiva notação alfabética -, conotável com a cibernética; e a “paisagem”, um mito legitimador do modernismo e do poder Ocidental, aqui artificializada a um grau extremo recorrendo a processos digitais – nove imagens virtuais impressas em tela de “backlite”, realizadas a partir de fotografias digitalizadas e modificadas por computador (utilizando o programa “adobe photoshop” num “macintosh”).


1 Thames and Hudson Ldt, New York, 1995

2 Thames and Hudson Ltd, New York, 1991

3 Citação feita por Frances A. Yates no seu livro The Art of Memory, Pimlico edition, London, 1992 a partir de R. Lull, Opera Omnia, Mainz,1721-42

4 Edições 70, Lisbon 1981

5 Anagrama, 1998

6 Fayard, 1994

7 in Landscap and Power Ed. W.J.T. Michel, The University of Chicago Press, Chicago and London, 1994.


[VALENTE ALVES, Manuel, “Arte da Memória”, in catálogo da exposição “Arte da Memória”, Centro Português de Fotografia, Porto, Outubro de 1998]