[Manuel Valente Alves, “Princípios da Perspectiva Linear”, 1994]

O CORPO E O PENSAMENTO por Margarida Medeiros

A exposição equaciona a ideia de representação como início e fim de um processo ontológico. A dimensão metafísica da obra, que é ao mesmo tempo o efeito de uma relação física de toque, de presença, de “choque”, aparece como algo que é estruturante da própria obra, mas que, ao mesmo tempo, dela transborda. Não será esse o sentido da bipartização entre os desenhos “geométricos” e a imagem do uno?

“Princípios de perspectiva linear” é um trabalho de Valente Alves que se desenvolve na sequência do anterior do artista em torno dos elementos constituintes da paisagem (terra, céu, mar). Em “Hóteis/Hotels” (CAM, 1992), a seis paisagens inidentificáveis eram associados nomes de seis hotéis do género universal (Hotel Presidente, Hotel Continental…). Em “Cassandra” (Instituto Alemão, 1993), a cinco imagens de nuvens correspondiam seis nomes de heróis homéricos. Agora, seis caixas negras de grandes dimensões abarcam seis duplos de imagens: na parte inferior, o desenho (com rigor, computadorizado) de formas de projecção de “perspectiva linear”; na parte superior, uma imagem de mar, cuja forma e dimensões se articula com o respectivo desenho, e cuja cor se modifica (dentro dos azuis – as fotos, a preto e branco, são reveladas em papel de cor com filtro azul, ampliadas, fotocopiadas e de novo fotografadas) ao longo da série de seis.

A exposição equaciona, de forma mais imediata, a ideia da representação como início e fim de um processo ontológico. O autor cita Agamben no texto que acompanha a exposição: “O homem é o ser que confrontando-se com as coisas, e unicamente neste confronto, se refere ao não-coisal.” Esta dimensão metafísica da obra, que é ao mesmo tempo o efeito de uma relação física de toque, de presença, de “choque”, aparece aqui como algo que é estruturante da própria obra, mas que, ao mesmo tempo, dela transborda. Não será esse o sentido da bipartição entre os “desenhos geométricos” e as imagem do uno, indicível, obscuro mar? Estamos diante do confronto entre a substância irredutível à forma, energia livre, pulsão sem objecto, e a forma sem substância, organização do espaço, configuração do objecto. O objecto é o mar, cortado geometricamente no papel, e a modulação da sua cor uma “escala emocional”: de um denso azulado (quase negro) a indefinição dos brancos.

Este trabalho coloca-se simultaneamente a dois níveis: num, conceptual, o objecto apresentado não tem muita importância, a não ser na medida em que pode ser elemento ilustrativo de um sistema discursivo (sobre a representação, sobre a relação entre a representação gráfica e imagem); noutro, mais simbólico, detecta-se um discurso do corpo, da relação entre corpo, mundo e pensamento, enquanto sistema a partir do qual a vida se organiza, ou um estudo sobre o modo como a emoção abre ou fecha o olhar, Valente Alves revela, no entanto, uma preocupação esticizante que as obras anteriores tinham evitado, opulência das caixas negras, opulência dos brancos em contrastes com os azuis, sendo esse excesso supérfluo face ao projecto no seu conjunto.

[MEDEIROS, Margarida, “O corpo e o pensamento”, Jornal Público, Lisboa, 11 de Março de 1994]