[Manuel Valente Alves, “Hotéis”, 1991]


VIAGEM E MEMÓRIA DAS IMAGENS por Margarida Medeiros

Neste recente conjunto de trabalhos fotográficos de Valente Alves o lugar do hotel como referência mítica da urbanidade, mas sobretudo como referência mítica de transgressão do espaço quotidiano, da rotina, como lugar de fuga/refúgio do Eu, é estruturado na idealidade da paisagem, anónima, despovoada e aberta (paisagem-projecto).

“Shall we go?” é uma expressão que nos recorda algumas cenas clássicas do cinema – não só americano a preto e branco -, em que um casal, recém-chegado a uma cidade desconhecida, de preferência em lua-de-mel, acabou de preencher a ficha do hotel (Continental, por exemplo), e se prepara para subir a escada… ou quando, enunciada no singular, é personificada pelo viajante solitário, detective ou escritor, eternamente nómada. São cenários que, sustentados por uma utopia colectiva, preenchem e trabalham (n)o imaginário urbano e sensual do Ocidente.

A presente mostra de Manuel Valente Alves, patente na sala de exposições temporárias do Centro de Arte Moderna, tem precisamente o título “Hotéis/Hotels”. No entanto, o visitante, ao entrar na sala, defronta-se com um “cenário” imprevisto: o conjunto das imagens expostas não nos mostra hotéis, mas uma combinação subtil entre nomes de hotéis – nomes bastante universais – e paisagens.

Os nomes referem-se a hotéis do princípio do século: Hotel Continental, President, Ambassador, Royal, Victoria e Plaza. Apenas seis. As paisagens poderiam ser de qualquer parte do mundo: são anónimas, áridas, quase desérticas, trabalhadas em tonalidades suaves, entre o cinzento e o sépia. Assim se articulam dois sentidos: Primeiro, o de um tempo passado/presente, que circula nos nomes dos hotéis (são nomes típicos do princípio do século) e remete para uma memória de emoções vividas/sonhadas, para a urbanidade sociabilizante – numa estratégia melancólica ou mesmo nostálgica; depois, o de um tempo de idealidade, “transtornado” na paisagem, intencionalmente despojada, irradiada para segundo plano, e colocando o espectador numa posição “panorâmica” (contemplativa).

A paisagem abre, o hotel fecha (aparentemente). Esta tensão irónica – que se conjuga com a moldura e vidro – parece ter ainda outro objectivo: o de baralhar os dados dos sentidos, de revolver os “clichés” do imaginário, para daí fazer emergir um outro texto, no qual fotografia, palavra, moldura e vidro nos falam do valor limitado da representação. O que é que diz uma imagem? E uma palavra? Ou antes, o que é que escondem? É esta uma das razões pela qual o imagem-paisagem é afastada da base do quadro (demarcando-se da representação tradicionalmente centrada), para dar lugar a uma barra branca, apenas preenchida pelo nome do hotel a ela associada.

O lugar do hotel, como referência mítica da urbanidade, mas sobretudo como referencia mítica de transgressão do espaço quotidiano, da rotina, como lugar de fuga/refúgio do Eu, é estruturado na idealidade da paisagem, anónima, despovoada e aberta (paisagem-projecto). Essencialmente feminina – a linha do horizonte que delimita estas paisagens de cor térrea, corpórea, quase se confunde com a linha de um corpo – esta paisagem suave transgride a contenção provocada pela moldura, pelo nome de hotel (símbolos do retrato).

O que resulta daqui é a afirmação da impossibilidade de redução do sentir e da memória à sua representação empírica, que será sempre escassa, na medida em que nunca poderá denotar o percurso – silencioso – das vicissitudes do desejo. Para isso contribui a insistência nas paisagens naturais, não identificáveis que sugerem a idealidade latente do sujeito, “grafada” na imagem-palavra do hotel, e com ela mantendo uma permanente ligação.

[MEDEIROS, Margarida, “Viagem e memória das imagens”, Jornal Público, Lisboa, 21 de Fevereiro de 1992]