[Manuel Valente Alves, “Arte da Memória, 1998]

O HOMEM QUE SABE, O HOMEM QUE VÊ, O HOMEM QUE BRINCA – ENTREVISTA A MANUEL VALENTE ALVES por Maria Helena de Freitas

Este trabalho mantém, relativamente à sua produção mais recente, três questões fundamentais – a utilização da palavra e do sentido textual, a convocação da memória e a paisagem enquanto objecto e referente. No entanto, a utilização das novas tecnologias e das possibilidades virtuais da imagem, introduz a diferença e, de modo muito claro, sinais de ruptura. Embora a matriz seja fotográfica trata-se agora de paisagens artificiais, manipuladas pelos grandes instrumentos de armazenamento de memória que são os computadores. Está ultrapassada a fotografia enquanto meio passivo de captura do real. Anuncia-se no seu trabalho o fim da fotografia, como já aconteceu o fim da pintura?

É possível que esta exposição marque o fim da fotografia no meu trabalho. Mas não rejeito em princípio a utilização de qualquer técnica ou processo. Até porque me parece pouco viável que algum dia se possa pôr fim à fotografia; do mesmo modo que é implorável que alguma vez se ponha completamente de parte a pintura, a escultura; ou o cinema ou o vídeo, técnicas mais recentes. Acredito que continuarão a existir, independentemente dos discursos que proclamam, ou anunciam o seu fim.

Porque fazem parte integrante da nossa memória civilizacional, da tradição cultural em que nos inserimos, as suas práticas convocam não só as técnicas do fazer mas também (ou sobretudo) as memórias ligadas à sua história, o que nos permite utilizá-las como instrumentos de reflexão ou de análise crítica. O que talvez não faça hoje sentido é inseri-las numa divisão por géneros.

Porquê esta “morte” que arrasta consigo a memória da paisagem?

A ideia da morte que arrasta consigo a memória (da paisagem e não só) é uma questão actualíssima. Vivemos uma época centrada na ideia da morte, do apocalipse: as pessoas estão permanentemente à espera do fim, de um fim qualquer. Não acreditamos no futuro porque temos medo de criar expectativas hoje que se revelem frustrantes amanhã. Vivemos num presente eterno sem devir, sem esperança.

Foi com a explosão de Hiroshima que a ideia do fim da humanidade se colocou muito concretamente. Hiroshima, com efeito, congelou-nos, numa espécie de presente sem devir, porque o futuro, qualquer ideia que hoje possamos formular àcerca do futuro da humanidade, surge sempre assombrada por essa não-lembrança, por esse não-acontecimento.

Apesar das extraordinárias possibilidades que hoje temos de armazenamento de memória, nomeadamente através dos computadores, o esquecimento tornou-se uma verdadeira prática de subsistência, por estes e outros motivos.

A necessidade de minimizar a memória colectiva tornou-se mais urgente após a segunda guerra mundial. A difusão dos filmes Super 8 muito especialmente do vídeo – as populares handycam que permitem registar quase tudo o que acontece na vida de uma pessoa, desde o nascimento, passando pela adolescência e vida adulta até à morte, são exemplos. Mas antes já a fotografia o havia anunciado com os álbuns de família. A Kodak foi a marca que melhor se inseriu nesta estratégia, desenvolvendo câmaras e películas baratas, de fácil utilização e manutenção, acessíveis a quase toda a gente. A apetência, principalmente por parte das classes médias, por este tipo de registos, deriva em grande parte do inegável fascínio que a possibilidade de criarem a sua própria história individual, lhes proporcionava.

A fotografia anunciava assim uma nova era construída em torno das imagens: a mundialização. A memória individual ia-se sobrepondo à memória colectiva. A situação tornou-se clara quando as fronteiras começaram, de facto, a ser abolidas (inicialmente através da cultura audiovisual – o cinema e a televisão – e depois a Internet). O objectivo era, como agora se comprova, a criação de uma cultura única, comum a todos os países, capaz de extinguir o sentido de comunidade nacional. Apagar a memória colectiva (do ocidente e não só), incrementando a memória individual, passou a ser imperativo não só de ordem política, mas também de ordem económica e cultural.

Este retorno à variabilidade / liberdade das imagens através da manipulação virtual, não poderá ser tomada como uma forma desviada de “regresso à pintura” e um retorno a um exercício plástico de pensamento sobre as questões da pintura?

A virtualidade e variabilidade das imagens digitais alteram de um modo radical a nossa percepção do mundo, tornando-o mais subjectivo (não há um mundo, há vários mundos, tantos quanto os indivíduos) e menos real, reforçando o narcisismo individualista. Começámos por desconfiar da fotografia e, agora no começo da era virtual, a maior parte das imagens que invade o nosso quotidiano, de forma quase sufocante, não tem qualquer correspondência com o real: são poderosíssimos instrumentos de manipulação física e psicológica, que têm vindo a criar universos cada vez mais autónomos, separados da esfera da vida. E aqui talvez possamos falar deste tipo de imagens como formas desviadas de “regresso à pintura”. É que as pinturas, mesmo as mais realistas, eram “virtuais” avant la lettre. A pintura sempre nos deu, com efeito, uma imagem “falsificada” do mundo, “inventada” pelo artista, ficções umas vezes realizadas a partir de um contacto com a realidade, outras sem qualquer base real.

As “belas paisagens”, por exemplo, sempre foram um artifício, uma manifestação do poder do homem sobre a natureza. O cerne do conflito “natureza/cultura”, que durante milénios esteve na origem das grandes querelas do mundo Ocidental, foi como todos sabem a paisagem, a integridade da paisagem ameaçada pelo desenvolvimento da cidade. A chamada “morte” da fotografia acabou por arrastar consigo também a memória da paisagem (em conjunto com o retrato e a natureza morta) foi um dos géneros mais idolatrados e difundidos pela fotografia.

Poderemos pensar que a dicotomia natureza/cultura está ultrapassada?

Eu penso que sim. A natureza, a imagem da sua realidade física, parece estar inteiramente processada, armazenada em arquivos, disponível para ser consultada e “trabalhada” (virtualmente). O contacto com a realidade tornou-se assim, cada vez mais escasso, culturalizado através das técnicas de virtualização. Há como que uma subversão da natureza pela cultura. Por ora não podemos imaginar as consequências de uma tão radical transformação. Daí que, como refiro no texto de introdução à “Arte da Memória”, considere a pós-moderna colisão “cultura/cultura” como o crash-test das políticas globais.

Mas voltando à paisagem, e no quadro da história da arte, vale a pena recuar um pouco para tentar perceber melhor as origens desta culturalização do natural que se assiste actualmente.

É na segunda metade do século XIX que surge o verdadeiro interesse pelas paisagens não míticas ou alegóricas, isto é, as paisagens realistas. Primeiro através do naturalismo pictórico, e depois do realismo fotográfico. Conhecem-se, contudo, representações de paisagens realistas já em finais do século XVI. Que não são pinturas: trata-se de gravuras (obras consideradas “menores”), utilizadas como documentos para fins militares. Estas gravuras proporcionavam aos militares uma visão mais realista do terreno de combate. A gravura tinha a vantagem da reprodutibilidade e, portanto, melhor difusão.

É curioso verificar que estes artistas (gravadores) utilizavam, regra geral, não a perspectiva “linear” (utilizada pelos pintores), mas um outro tipo de perspectiva pouco conhecida (pelo menos entre artistas) – a perspectiva “cavalière”, que não tinha tanto efeito de profundidade, mas que proporcionava uma melhor percepção da altura das construções nos diferentes planos e tornava o relevo mais visível.

A cultura parece, pois, ter-se apropriado completamente da natureza. Tem razão Xavier Ventos ao dizer que “a realidade não processada é cada vez mais escassa”. De facto, a natureza viva vai desaparecendo da nossa experiência do sentir, substituída por imagens cada vez mais livres (virtuais), que subvertem o real, culturalizando-o.

Lembro-me de um filme estreado entre nós recentemente – “Fogo de Artifício” do japonês Takeshi Kitano – uma obra prima centrada no conflito “cultura/cultura”.

Trata-se no filme, já não do conflito comum entre o Bem e o Mal, mas de um choque, uma violenta colisão entre o Mal e o Mal. A grande cidade – Tóquio – aparece neste filme conotada com o Mal (a violência urbana); e a natureza campestre, outrora conotada com o Bem (a Arcadia, paraíso terrestre), surge aqui contaminada pela violência urbana, não escapando assim à lógica do mal. As marcas do Mal inscrevem-se por todo o lado, o paraíso transforma-se num inferno. A natureza, a paisagem natural, outrora abrigo, refúgio para o homem, é aqui uma Natureza amaldiçoada, armadilhada pelo homem. O desfecho é o suicídio dos principais protagonistas, incapazes de suportar tamanha violência.

No seu trabalho, a utilização da palavra tem vindo a contaminar a transparência das imagens fotográficas. Mantendo-se o jogo das palavras sobre as imagens, surge agora a possibilidade de se introduzirem elementos de perturbação e de desconstrução, na própria imagem. Como se relaciona a imagem de uma paisagem deliberadamente tornada abstracta, com a palavra? Como funciona neste contexto a acção contaminadora das palavras ou o jogo texto/imagem fundamental ao esclarecimento e complexificação do sentido narrativo do trabalho?

No contexto da progressiva desrealização da paisagem contemporânea, o poder de sedução da palavra associado à sua imagem é também cada vez maior, porque é a palavra que hoje atesta, confirma, a veracidade das imagens, dando-lhes o sentido que carecem de modo a torná-las inteligíveis. Vivemos num mundo submerso em imagens, imagens das imagens das imagens, mas também por palavras que com elas jogam: não há duvida que as imagens exprimem tão-só o que as palavras quiserem que elas exprimam. A associação imagens/palavra é o que, de facto, dá alguma inteligibilidade ao mundo. Hoje, quem não souber conjugar estas linguagens, estes dois sistemas – o das imagens e o das palavras – é um analfabeto funcional para todos os efeitos.

Mas há quem não perceba (ou não queira perceber) isto.

Giovanni Sartori, um dos fundadores da moderna ciência política, deu há dias uma entrevista, a propósito do seu último ensaio “Homo Videns” (o Homem que vê), uma crítica violentíssima à televisão. Sartori defende que se as crianças começarem a olhar a televisão desde muito cedo, acabam por criar uma ilusão do mundo, que será fatal para o “Homo Sapiens” (o Homem que Sabe). Fatal porque assim elas nunca irão adquirir a capacidade de desenvolver o pensamento abstracto, indispensável para cultivarem o poder de imaginar o mundo. O mundo ficará para elas, deste modo, reduzido ao visível. Sartori considera tal um retrocesso, que irá pôr fim à civilização Ocidental, porque impossibilitará o homem de criar e desenvolver noções abstractas, base do conhecimento científico (a título de exemplo, refere a constituição, o desemprego, etc., conceitos que não têm qualquer correspondência visual, mas com os quais lidamos diariamente).

António Damásio, no seu livro “O Erro de Descartes”, demonstra que pelo contrário, o pensamento é feito sobretudo de imagens. Cita Einstein quando este afirmava peremptoriamente que as palavras ou a linguagem, na forma como são escritas ou faladas, não tinham qualquer papel relevante na mecânica do seu pensamento. Para Einstein o pensamento era determinado por sinais mais ou menos definidos, que depois poderiam ser voluntariamente reproduzidos e combinados. O pensamento abstracto era para este homem (talvez o maior génio da ciência no século XX), algo verdadeiramente secundário: recorria às palavras ou outros sinais abstractos somente quando o jogo associativo já se encontrava estabelecido.

São Tomás de Aquino, no século XIII, tinha uma posição idêntica, ao defender que o homem não podia pensar sem imagens (para São Tomás um Deus abstracto, com quem os homens não se identificassem também fisicamente, não fazia qualquer sentido – por isso ele se batia tão empenhadamente na defesa das imagens, nomeadamente as de Cristo, da Sagrada Família e dos Santos, essenciais para incrementar o processo de evangelização que a igreja católica leva a cabo em todo o mundo). A “Arte da Memória” de Ramon Lull, assentava, pelo contrário, em conceitos abstractos e universais. Mas, curiosamente, viria a ser utilizada no Renascimento em sincretismo com a “Arte da Memória” de São Tomás, que se lhe opunha. Descartes e Leibniz interessaram-se pelo sistema luliano, porque o associavam à “matematização da memória”, uma noção com que a ciência tentava libertar-se da concepção visual do conhecimento, considerada intrinsecamente ilusória pelos cultores da ciência nascente. No fundo o sistema de Ramon Lull anunciava com sete séculos de antecedência a cibernética, os modernos computadores.

Leonardo da Vinci, outro génio, mas da Renascença (agora promovido, via Bill Gates, presidente da Microsoft, em “génio do milénio”), possuía uma prodigiosa imaginação, mas também essencialmente visual. Leonardo apoiava-se no desenho para conceber todo e qualquer tipo de projecto: desde a pintura, passando pela arquitectura, até à hidráulica e à visualização dos fenómenos, desenhar era simultaneamente um método de entendimento e de invenção.

A ciência não se reduz a um mero saber: João Caraça, num pequeno livro intitulado “O que é a Ciência”, critica a postura arrogante a todos aqueles que reduzem a ciência à investigação científica, mostrando que do saber ao fazer há quase sempre um longo caminho a percorrer. As imagens (virtuais ou outras) são hoje instrumentos importantíssimos tanto para o saber como para o fazer. Poder-se-á questionar o seu sentido, mas nunca a sua importância para o desenvolvimento da arte, da ciência e da tecnologia. São também as imagens que permitem uma maior e melhor difusão dos valores, das atitudes e das expectativas de índole científica, favorecendo uma cultura da ciência que, entre outras coisas, permita ligar a investigação cientifica à vida.

Voltando a Damásio, ele conclui, à maneira de um homem das ciências do Renascimento (como Leonardo...), que as imagens serão provavelmente o principal conteúdo dos nossos pensamentos e, por conseguinte, imprescindíveis para a elaboração do pensamento abstracto.

Um dos seus trabalhos mais recentes é um vídeo em que filma através de um comboio uma paisagem (em movimento) acompanhado da banda sonora de uma música intencional. A acção da palavra é aqui transferida para a acção da música que a acompanha, marcando ou desviando os sentidos das imagens.

“A Arte da Memória” pressupõe também uma imagem em movimento. Não aquela que passa em frente dos nossos olhos através da janela do comboio em movimento mas aquela que podemos movimentar através da janela (ecrã) do computador. O referente mantém-se imóvel é o olhar do artista que o movimenta, que o modifica. Este trabalho recente influenciou certamente esta sua actual atitude de ruptura com a fotografia.

O movimento interior, a deslocação no espaço (físico, psicológico e social) a partir de uma janela (renascentista) é a imagem que me ocorre para melhor definir a natureza do homem pós-moderno. E é essa circunstância peculiar, de estar sempre em trânsito de um lugar para o outro, que lhe permite assimilar o “Homo Sapiens” em “Homo Videns”, da mesma maneira que transitou da “Câmara Escura” para a “Câmara Clara”; do cinema, para o vídeo; da realidade para a virtualidade, e desta certamente para a fantasia – o “Homo Ludens” (o Homem que Brinca). Descartes e Leibniz desconfiavam das imagens. Porém, o homem contemporâneo usou a tecnologia para criar as suas próprias imagens, à maneira de Deus. Assim se arrisca a perder a identidade (humana), e a adquirir um novo estatuto (virtual). Quando aí chegarmos estaremos já a viver uma outra era, certamente – -pós-humana, talvez.

Porquê este artificializar da imagem num trabalho onde claramente se convoca a memória? A convocação da memória abandona aqui as imagens reais e desvia-se para um território mais expansivo de exercícios formais. Qual o sentido temático deste desvio?

A memória tornou-se um fardo para o homem contemporâneo. A nossa base cultural é cada vez mais incerta – não existe nas cidades (nem na arquitectura, nem nas ordens antigas ou modernas), nem nas paisagens naturais. A arte é cada vez mais uma coisa morta e definitiva, que não interage, retraindo-se e cristalizando-se, prisioneira da economia e da política, ignorando a ética e falsificando a estética. É um sinal dos tempos de deriva, incerteza, e decadência em que vivemos, à espera a todo o momento de uma mudança qualquer que viabilize o mundo, que o torne mais aceitável. Entretanto combinam-se e recombinam-se imagens – da natureza e das palavras – joga-se até ao fim. Articula-se a sabedoria do “Homem que Sabe”, com a virtualidade do “Homem que Vê” e a ludicidade do “Homem que Brinca”.

[FREITAS, Maria Helena de, “O homem que sabe, o homem que vê, o homem que brinca – entrevista a Manuel Valente Alves”, in catálogo da exposição “Arte da Memória”, Centro Português de Fotografia, Porto, Outubro de 1998]