[Manuel Valente Alves, “Donde vimos? O que somos? Para onde vamos?”, 1999]

VALENTE ALVES: O LUGAR DE UM PROBLEMA por Leonor Nazaré

“Será a inteligência um presente envenenado?” É este o nome que Hubert Reeves deu ao capítulo de um dos seus livros1 em que tenta explicar como surgiu e evoluiu a vida desde os magmas e explosões galácticas iniciais à complexidade do cérebro humano de hoje. Do Homem, lembra-nos que se comprimíssemos num dia a duração do planeta, ele teria surgido nos últimos dois minutos. E ao tentar pensar “quando e como, nesta matéria fervilhante de gestação cósmica, a pulsão de morte deu entrada” persegue a preocupação global de encontrar nos diferentes escalões de organização e evolução da matéria e dos seres vivos, um fio que o conduza ao entendimento dos paradoxos auto-destrutivos da espécie humana.

O seu ponto de vista de astrónomo e cientista é muito diferente daquele em que se coloca Valente Alves quando procura entender estas e outras disfunções sociais e individuais, a não ser em dois pontos: a necessidade de entendimento e a poesia, mesmo quando muito do que é preciso chamar à colacção na procura parece estranho a esses dois valores. Refiro-me a algo de perceptível em Hubert Reeves, e que faz, aliás, a sua originalidade como cientista, que é imediatamente anterior ao acto criativo de escrever ou conceber uma obra plástica visual. Refiro-me, no caso de Valente Alves à sua aptidão e ansiedade poéticas, como o seu esforço humanista em geral e ao seu hesitante, quase extinto optimismo, à procura de razões para se manter.

Um apontamento biográfico só é útil por enquadrar a iniciativa artistica de V.A., porque é através dela que procura um sentido integrado para o mundo, a arte, as linguagens , as imagens, as opções humanas, e ainda um sentido para o pensamento sobre todas elas. Isso corresponde a sucessivas realidades e meta-discursos que na obra podem surgir sumária ou elipticamente indicados, mas a informam algures, fazendo dela exemplo por excelência duma síntese. Uma síntese é integrativa e no caso da obra de arte é também frequentemente um sistema aberto e dinâmico que facilita o acesso a si próprio a quem se dispõe a utilizar o mesmo tipo de instrumentos de procura que lhe deram corpo. A obra de arte é por isso um sistema tão aberto quanto o mundo, mas não necessariamente fácil, porque se fecha à gratuidade de abordagem ou à não sintonia.

O ritmo ternário da exposição, nas perguntas que fazem o título de Gauguin e no próprio dispositivo das três paredes é também muito simplesmente a repartição tradicional do tempo. Acerca do passado, "donde vimos?" podemos entender que nos propõe a imagem da "Tempestade" de Giorgione, na qual diferentes níveis de resposta são possíveis, desde o do mais arcaico triângulo familiar que ali se poderia inventar, ao texto alegórico que identifica o homem à coragem e a mulher à caridade, passando pelos valores ligados à natureza ou à maternidade, aos mitos ligados à trovoada, aos quatro elementos e aos paraísos perdidos que Gauguin invoca. O futuro, "para onde vamos?" é demasiado incomodamente assimilável ao holocausto nuclear e não pode senão surgir aqui como uma inverosimilhança. "O que somos?" desloca a imagem peregrina e espacial do vir e do ir para a questão explicitamente ontológica: se não se pergunta onde estamos, mas o que somos é porque o que importa é o que nos define a natureza e que as metáforas espacio-temporais sejam absorvidas por essa mesma interrogação, à qual a História, aliás, não pode sozinha responder.

É nessa passagem de um eixo cronológico para uma interrogação ontológica, mas mantendo integrada uma presença da História, que se encontra a força brutal da interpelação, e a elipse visual do presente, (não há imagem para onde estamos e podemos ser tanto o que se vê em Giorgione quanto o que se vê na pagina de revista), corresponde a uma responsabilização acerca do que faremos de um potencial em que se misturam pulsões de vida e de morte, exacerbadas hoje a uma escala nunca antes conhecida. A ideia de tempestade promove a deslocação semântica de um para outro tempo histórico, a intromissão gráfica, jornalística de "SHOCK FUTURE" na réplica de Giorgione dissolve o tempo, a memória de paraísos perdidos invocada por Gauguin e a tela pintada depois de grave doença que o fez entrever a morte, anula-o.

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Forçoso é reconhecer que a ciência e a tecnologia se introduzem na História deste século como amplificadores de tendências humanas à escala duma monstruosidade planetária. São com certeza muitos os motivos de deferência e agradecimento, mas também suspeitas várias das motivações e desvios de investigação e aplicação. É a instituição militar que frequentemente a perspectiva e a representa. A questão da imagem associa-se à da distinção entre a imagem visual e a do poeta, ao prescrutar das linguagens.

Uma outra urgência em V.A. é da felicidade, mas praticamente não aparece formulada... A paisagem, a árvore, o ritmo melancólico, a nostalgia de beleza, a ideia de esgotamento e renovação é um conjunto vocabular que a indicia.

Finalmente o discurso de V.A. é atravessado pela referência sucinta e selectiva a textos da história da filosofia e da arte em que as questões em que pensa foram pensadas. A atemporalidade que por essa via Ihes confere não deixa de ser recortada por imposições muito materiais de percurso que se traduzem pela justificação de suportes: a passagem da pintura à fotografia em 89, ao vídeo em 97 e à imagem digital em 98. As opções de suporte são de facto fundamentais na produção de sentidos na obra de Valente Alves: determinam-nos e deixam-se determinar por eles, permitem pensar coisas que Ihes são exteriores e são por sua vez pensados por essa incursão na vida. Por isso não é claro em V.A. o que mais pesa na balança do optimismo e do cepticismo técnico-científico; por um lado porque a sua relação com esse saber não é maniqueísta, por outro porque é necessariamente feita da cultura do seu tempo e a constatação de só poder ter voz falando a linguagem dela é demasiado impositiva. Mas a opção tecnológica não parece sequer uma concessão; é voluntária porque V.A. quer dinamizar a memória utilizando os próprios meios que a têm destruído e resgatá-la assim mais vitoriosamente. Ou se calhar não tem sequer essa componente estratégica que lhe vejo e existe tão somente porque não é possível perceber o que pensa e sente o universo virtual sem o experimentar por dentro e exprimir-se nele.

Poderia formular a hipótese de que uma razão semelhante está entre as que explicam que V.A. tenha dedicado tanto tempo e virtuosismo à pintura desta réplica da pintura "A Tempestade" (1507) de Giorgione. O tempo de a pintar foi talvez o tempo de sentir e pensar uma parcela do que sentiu e pensou o autor do original? Dificilmente. Mas apesar da pintura em V.A. ter apenas permanecido sob a forma de interrogação teórica sobre ela, apesar da ignorância em que faz questão de nos manter acerca do provável prazer sensual que lhe proporcionou a execução dela, apesar da lógica de citação e apropriação que nos assinala, é quase impossível não opor a matéria do acrílico à superfície lisa da fotografia ou do écran que a poderiam ter reproduzido.

Esta é na realidade a reprodução duma reprodução porque foi na presença duma fotografia e não do original que a pintou. Depois de ter estudado cuidadosamente a obra de Giorgione, a execução técnica do original afigurou-se-lhe no entanto impossível de imitar, como se tudo o que aconteceu na história da pintura e da arte posteriormente não pudesse deixar de se imiscuir no fazer, e como se a opção pelo acrílico, por exemplo, permitisse corrigir e justificar a ciência e a tecnologia devem os mais fortes impulsos de avanço. É no terreno delas que se tornou possível chegar ao microscópico para macroscopicamente nos destruir ou geneticamente manipular. É na sua esfera que cresce e se alimenta a invenção e difusão da imagem e dos media em geral, que hoje não saberíamos substimar, mas de cuja lógica política deveríamos, com vantagem, adquirir consciência real.

Algo de sempre próximo do ignóbil costeia o que de melhor possa ser feito pela ciência: o poder e o simulacro, mesmo que sem intenção inicial, acabam por surgir como congéneres da procura de conhecimento exclusivamente baseada na tecnologia. E é talvez nesse ponto em que a natureza da imagem pode ser discutida a partir de questões comuns às do debate sobre outros produtos civilizacionais, que V.A. situa grande pane da sua preocupação reflexiva.

Veja-se por exemplo a entrevista publicada no catálogo da exposição "Arte da Memória" (1998) para, duma forma aglutinadora em relação ao percurso feito, ler V.A. acerca de como as suas interrogações sobre a natureza humana, a cultura, o conhecimento e a memória individual e colectiva se imiscuem nas que se coloca sobre o regime contemporâneo das imagens, o real e o virtual, a experiência autêntica e a mediada; acerca de como a perca duma Natureza soberana e rebelde e por isso da nossa experiência de não a dominar cresceu com o processamento da imagem e com a alteração que géneros como a paisagem em pintura foram sofrendo ao longo do tempo; acerca de como está a mudar a nossa estrutura profunda de percepção e por isso também de conceptualização; acerca de como a palavra é que salva o mundo das imagens da ininteligibilidade em que o lança o virtual. Como diz L. M. Nava "... a palavra (..) às vezes. se a puxarmos, acontece vir atrás a própria pele do mundo ou mesmo a sua carne.3

Estas são questões que trata desde o início dos anos 90 em exposições e em textos como "Depois da paisagem" (92), o "O Homem precisa de imagens para pensar" (93), "Da perspectiva ao romantismo" (93), "Et in Arcadia Ego" (95), "Vitória de Samotrácia" (96), ou "Hotel Europa" (97). Há um texto subliminar a todos estes que organiza os símbolos, os temas e os processos do mundo da arte e do resto numa mesma problematização de meia dúzia de coisas. Uma primeira é a do peso da vontade e da escolha nos percursos individuais; a da vigjlância que se opta ou não por fazer das lógicas hegemónicas e dos desequilíbrios sociais que a economia, o poder e a rivalidade podem rapidamente traduzir em fome e genocídio. Uma segunda é a do esclarecimento do verdadeiro e do falso, do real e do artificial, da aparência e por isso também da imagem, onde cabem por exemplo a revisão de alguns neo-platonismos ou as considerações sobre geral mais próximos do equilíbrio seriam os que maior número de imagens válidas tivessem utilizado. Só as vividas e sonhadas podiam ser em igual número. Os critérios de validade não seriam no entanto os mesmos para toda a gente e teriam a ver com os tipos de procura de cada um. A sua validade seria aferível em função dessa procura mas não seriam preciso juízes disso porque o processo seria homeostático e portanto auto-regulador de coerências, legitimidades e pertinência.

Imagine-se a imagem virtual (não exclusiva da imagem informática) como algo que se inscreve num extenso piano de representações que envolve milhares de vezes o planeta em muitas camadas de pele tatuada a que não corresponde nenhum corpo; como papel que nos embrulha tapando o sol. Esse seria o falso repertório de imagens. Porque nele se toma a matematização digital e cibernética por réplica fiável da matematização da natureza (as geometrias sagradas, as séries de Fibonnaci, o número de ouro e por aí fora...)

As imagens escolhidas, pensadas e propostas por V.A. são desta e doutras naturezas. A destrinça tipológica é-me essencial e sempre difícil e esta digressão imaginária não a conversei, por acaso, com V.A. Mas ter-se-á cumprido um dos objectives simples do seu trabalho relacionado com a necessidade imperativa de fazer os outros conversar.

Ao surgir como fornecedor de pretextos para pensar o mundo e a vida e ao utilizar sobretudo formas de citação ou utilização de imagens pré-existentes, artistas como V.A. procedem a uma aparente demissão do estatuto de criadores estéticos, no sentido mais corrente, para proporcionarem um outro tipo de estetização: a do lugar de apresentação de um problema. Se por um lado, a ideia de obra, neste tríptico, só aparece como título, como réplica e como não obra, por outro lado o lugar da exposição precisa do dispositivo cenográfico, mínimo mas intenso, que a instaura. É ele que dá existência ao momento e lugar do acontecimento expositivo, à proposta de que conversas e incomodidades se gerem, como cenário e palco que V.A. propõe que se invada e discuta porque só com esse movimento estará completa a obra. Numa entrevista dada ao Publico em 25 de Maio de 96 afirmava:

"A estética precisa duma ética para se constituir como praxis. A estética pela estética é uma perversão fascista (nacional ou social...) assim como a ciência pura. Qualquer conhecimento estanque gera monstruosidades. O artista tem como responsabilidade histórica interrogar o mundo e as suas contradições através de um saber que se baseie em princípios como a generosidade, solidariedade, busca do conhecimento essencial das pessoas e das coisas."

Na "Tempestade" de Giorgione a mulher olha-nos como se esse olhar fosse a consciência da pintura de que é olhada. Surpreende a nossa indiscrição. Entre o nobre que a olha, ela que nos olha e nós que a olhamos, estabelece-se mais um triângulo que é o do movimento do olhar à distância no tempo. A noção dita pós-moderna da apropriação é sobretudo aqui uma forma de configurar uma relação com a memória, a cultura, a política e a criação em geral.

Da sua prática pictórica informe, abstracta e às vezes matérica da década de 80 quase nada pode ser aqui revisto, a não ser alguns títulos de obras de 85 e porque mais uma vez é a linguagem verbal que assegura o continuum imaginário: "Dois silêncios paralelos", "Nudez cristalina", "Onde a luz brilha", "O sabor a terra", "Capaz de todas as cores", "Oiro agreste sadio mistério", "Adormeceu o vento". A intemporalidade dos arquetipos que informam estes títulos como os textos latentes da obra de Giorgione, é provavelmente sobreponível à historicidade das suas alegorias codificadas: o triângulo familiar, a ponte que liga as margens em que ele e ela se encontram e separa também o perto e o longe, a distribuição da luz, a nudez da mulher porque mãe e porque natureza, a presença dos quatro elementos, a atribuição de uma grande árvore a cada um, a passagem e os desvios do rio, a tempestade ao longe e uma tão enigmática tranquilidade do cenário4, o relampago, ("...ou e Deus que nos olha em cheio: dentro" 5?), o berço que os arbustos desenham no acolhimento destes personagens que, como arautos, prenunciam a vida de um espaço, duma vila, e antes dela duma floresta. Estas são as sugestões interpretativas a que o historiador de arte resistiria. Sei pouco da história deste quadro e se calhar tanto melhor para saber das razões profundas da sua apropriação por Valente Alves.

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De regresso à questão da omnipresença da imagem, da sua inevitabilidade no pensamento mas também da proliferação entrópica em que foi lançada, eu diria que V.A. a prescruta com a mobilidade de ponto de vista própria da inquietação filosófica mas a capacidade de decidir e concretizar de artista. A decisão é sempre um enigma. O que sublinhar na sobredeterminação duma escolha? Como perceber esse momento em que alguém afunila um turbilhão de problemas numa proposta visual de leitura simples?

Imagine-se as coisas todas do mundo como um banco de dados e todas as imagens possíveis como um repertório em que se misturam imagens válidas e não válidas, existentes e inexistentes, reais e falsas, vividas e sonhadas, prováveis e inverosímeis. Os artistas e pessoas a entrar e sair da obra. É no que fazemos disso na vida que Valente Alves quer situar o centro, definir a perspectiva e pontos de fuga do seu trabalho. No cartaz para o festival de teatro de Almada deste ano6, o olhar andrógino da estátua grega leva o palco à rua, e a intensidade sensorial duma flor reconduz a nostalgia da experiência estética aos lugares de criação artística.

A página da Newsweek é para esquecer logo a seguir a ver. Toda a gente sabe que corresponde à negação da perspectiva, do ponto de fuga e do olhar; que resulta em cegueira literal; que o formato vegetal (árvore, cogumelo) seria um simulacro final. Na guerra não há nunca que discutir quem tem razão. Isso é fazer o discurso da guerra. Seria preciso discutir algo de imediatamente anterior à espécie, uma programação...

Como diz um personagem de Terence Malick no filme "Barreira Invisível", provavelmente "as coisas pioram muito, antes de melhorar." Pois já pioraram que chegue.


1 H.Reeves, A Hora do Deslumbramento, Ed. Gradiva.

2 Para além de artista, V.A. é médico, com uma postura no exercício da profissão particularmente empenhada na tradição humanista de integração de diferentes tipos de saber na compreensão do Homem como globalidade e de cada pessoa particular

3 In vários autores, Palavras, p.41, Ed.Mirto, 1984

4 Maria Zambrano refere-se eloquentemente à impressão que lhe causa esse enigma em “El enigmático pintor Giorgione”. Alguns Lugares da Pintura. Ed. Acanto, Madrid, 1987.

5 in Herberto Helder, verso em “Estremece-se às vezes desde o chão”.A cabeça entre as mãos. Ed. Assírio e Alvim, Lisboa, 1982.

6 O cartaz é este ano da responsabilidade de Valente Alves e Victor Diniz.


[NAZARÉ, Leonor, “Valente Alves – O Lugar de um Problema”, catálogo da exposição Donde vimos? O que somos? Para onde vamos?, Casa da Cerca, Almada, Junho de 1999]