[Manuel Valente Alves, “Arte da Memória”, 1998]



MANUEL VALENTE ALVES OU O ELOGIO DO DIÁLOGO por João Sousa Cardoso

A memória tornou-se um fardo para o Homem contemporâneo, a nossa base é cada vez mais incerta - não existe nas cidades (nem na arquitectura, nem nas ordens antigas ou modernas), nem nas paisagens naturais. A arte é cada vez mais uma coisa morta e definitiva, que não interage, retraindo-se e cristalizando-se, prisioneira da economia e da política, ignorando a ética e falsificando a estética. É um sinal dos tempos de deriva, incerteza e decadência em que vivemos.

Manuel Valente Alves in catálogo “Arte da Memória” (entrevista com Maria Helena de Freitas)

É, precisamente, num constante desafio a este estado de coisas e a esta forma de viver as artes que se tem desenvolvido o percurso de Manuel Valente Alves, ao longo dos últimos quinze anos, pautado por uma rara lucidez e um espírito audazmente contemporâneo.

Questionar tem sido, ao nível da fotografia, a palavra de ordem da sua pesquisa: questionar os mais antigos sistemas de representação, questionar a progressiva virtualização do real, questionar a relação (tempestuosa, elitista ou de indiferença) das artes com a vida, questionar as estruturas de organização social, questionar o valor e poder das imagens, nos dias de hoje.

“Arte da memória”, exposição que esteve patente no Centro Português de Fotografia, há bem pouco tempo, assinala a chegada a um novo estádio de problematização, na pesquisa que Manuel Valente Alves tem vindo a assumir. Trabalhar a fotografia passa a significar trabalhar a memória da fotografia e trabalhar a paisagem (enquanto objecto privilegiado da fotografia, a par do retrato e da natureza morta) através da sua digitalização traduz uma radical subversão da natureza pela cultura.

Partindo tanto de autores que atribuem à imagem o principal conteúdo dos nossos pensamentos e, por isso, o factor determinante na elaboração do pensamento abstracto (São Tomás de Aquino, Leonardo da Vinci, António Damásio,...) como de outros que duvidam de uma concepção visual do conhecimento (Ramon Lull, Descartes, Leibniz,..) Valente Alves faz uso das novas tecnologias e digitaliza a fotografia de paisagem. Resta a memória de uma realidade humana e anuncia-se a partida em direcção a uma realidade que já é virtual (a da paisagem virtual e - quem sabe? - de uma condição pós-humana).

É neste cruzamento de informações e raciocínios que se entra num jogo de transformação do tempo, num diluir de disciplinas, num diálogo em que as inúmeras questões abordadas substituem qualquer tipo de posicionamento ideológico.

Se questionar tem sido a árdua tarefa de Valente Alves enquanto artista plástico, provocar o confronto com vista a um diálogo aberto tem sido a proposta de Valente Alves enquanto organizador de eventos artísticos. Em ambos os papéis, Valente Alves é, sem dúvida, um admirável criador.

“O Impulso alegórico” (ciclo de encontros promovido pela Ordem dos Médicos e coordenado por Valente Alves, onde figuras ligadas à Arte, Medicina e História eram convidadas a construir um discurso em torno de um mesmo objecto artístico) é um exemplo bem sucedido, num confronto verdadeiramente estimulante da criação de interfaces entre as várias áreas do saber.

“1911-1999” está integrado num programa de homenagem a um grupo de médicos da chamada “geração médica de 1911" - que inclui uma exposição e um livro-catálogo com textos da autoria de algumas figuras destacadas da Faculdade de Medicina e do universo das artes -, a geração responsável pela reforma do ensino médico no nosso país, colocando Portugal entre os países mais avançados, ao nível da investigação científica (posição que manteve até meados da década de 58).

Foram, para o efeito, convidados sete artistas contemporâneos (Helena Almeida, José Pedro Croft, Noé Sendas, Ângela Ferreira, Cristina Mateus, José Barrias e Miguel Palma) a conceberem, cada um, uma instalação evocativa da vida e obra daqueles médicos (Celestino da Costa, Azevedo Neves, Marck Athias, Aníbal Bettencourt, Sílvio Rebello, Henrique de Vilhena e Francisco Gentil).

"1911-1999" trata-se, por isso, de uma investida a vários níveis mas, acima de tudo, afirma-se como a consolidação de um modelo de pensamento (na forma de exposição) inédito entre nós e que se afigura como uma das grandes portas de saída das crises do Pós-Modernismo. É, assim, construído sem dúvida, um novo discurso de poder, assente numa reacção contra a instituição, promotora de uma situação de paridade entre as várias áreas do conhecimento. Rompem-se barreiras, desmantelam-se hermetismos, criam-se corredores de circulação.

Uma vez mais, confirmando a coerência do seu discurso, Manuel Valente Alves questiona o valor da História enquanto disciplina criadora de personagens unidimensionais, construtora de uma linearidade artificial e gestora de ficções mais ou menos credíveis. É pensada não só a acção do tempo sobre a geração médica de 1911 (e problematizada a nossa própria relação com esse produto), como a necessidade (hoje, momento de profundas transformações, mais do que nunca) de uma atenta revisitação e reformulação do passado para, mais do que ler as condições actuais, decifrar as equações de um futuro próximo.

Agustina Bessa Luís defende que "o lugar da vida não é o lugar da História. Num, passa-se o mistério. Noutro, corrige-se a realidade.” Manuel Valente Alves não só o prova, através da sua obra, como numa atitude eficaz de intervenção social, política e ecológica, sistematiza a apropriação, cruza Histórias, reinscreve os produtos de um incessante processo de miscigenação numa realidade outra... Começamos, assim, a tomar consciência da natureza falaciosa de muito do que aprendemos como verdadeiro, da possibilidade de outras formas de agir, da incontornabilidade do diálogo e aventurarmo-nos, com isto, a um novo espaço de inteligência.

[SOUSA CARDOSO, João, “Manuel Valente Alves ou o elogio do diálogo”, Revista Desvio 265, Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, nº 2, Janeiro de 1999]