[Manuel Valente Alves, “Hotéis”, 1991]


MANUEL VALENTE ALVES por João Miguel Fernandes Jorge

São seis os hotéis. São seis as fotografias. Trazem por nome designações tão comuns como «President», «Plaza», «Victoria», «Ambassador», «Continental» e «Royal»; e as barras em que se inscrevem os seus nomes, ao provocarem ocultação no primeiro plano da fotografia, projectam-nos para o mais distante, para o mais longe da paisagem. Porque as seis fotografias são paisagens e resultam do exercício de uma ampliação de parte do negativo; elas conduzem-nos até ao limite possível, até uma distância que se aproxima da destruição e da desordem, que corroerá – instalando-se nos confins da oblonga imagem – as seis tonalidades sépia.

São seis fotografias. Seis paisagens de abandono e secura. No entanto, são afirmativamente fotografia: local perdido num espaço que se aproxima de um modo consciente e de que resulta um domínio das extremidades do campo em que se desenrola toda a acção. Fotografias; fotografia porque não pode excluir «a priori» as reminiscências. Mas a matéria tratada que nos é oferecida resulta de um modo tão diferente: as correspondências formais são precisas e pormenorizadas, como se o esquema, uma vez dado, se desdobrasse, engendrando as mesmas configurações aqui e ali: hotel, hotéis – objectos que trazem na sua clarificação a fotografia, como têm igualmente a moldura, o vidro, a legenda.

Cada uma destas imagens, cada uma à sua maneira - «President», «Plaza», «Victoria», «Continental», «Amabassador», «Royal» - fornece disposições que permitem decifrar mensagens que cada uma, sozinha, não teria bastado para reconstituir. O sentido da imagem (fotográfica) é duplamente determinado: pela que a precede ou lhe sucede no discurso da memória e pela que a poderia substituir para que permitisse a mesma ideia.

Imagens que se prendem a uma cadeira – não serão os próprios hotéis deste modo? – que se articula pela duração. Imagens mobilizáveis na paisagem que o seu «feitor» escolhe e selecciona em vez de outras que também podia ter utilizado. Hotéis e paisagens identificam-se. Existe para a definição de um drama, de uma palavra; para uma demonstração a que se chama «arte».

Manuel Valente Alves determinou deste modo a sua fotografia. Definiu-a como se fosse uma palavra, para depois transferir para um sentido figurado e objectual: «Hotel Royal», «Hotel Continental», etc. Deste modo atribuiu uma representação; abriu a fotografia a um (pequeno) drama. Usou a fotografia como se usa uma metáfora; como quem desvia uma palavra, como quem ergue um horizonte para nos introduzir numa paisagem, numa entidade, numa certa e determinada ordem conceptual.

A fotografia, o «objecto fotografia» - e não o objecto fotografado – mantém uma circularidade. Existe pelo simples facto de definir as imagens por meio de outras imagens e, nessa indefinição, acaba por intervir, tal como uma «paisagem» intervém na compreensão de um (quase) infinito número de horizontes. Idealmente, a fotografia constitui-se, à semelhança de um hotel, num instante (memorizado) e forma, na circular cadeia das palavras dos seus nomes, um sistema fechado.

Por muito que se queira afastar o carácter narrativo da feitura da arte – e mesmo a mais feroz monocromia é possibilitante terreno para a presença de uma teoria narrativa – uma acção «em drama» não permite que nos afastemos muito de um código enumerativo. A paisagem é um terreno único para o desenvolvimento de um íntimo clima sequencial; e se surge carregada de uma barra ostentando um nome de hotel, mais facilmente se constitui um nexo sintáctico. Um campo prático – a fotografia – transporta consigo o lugar para organizadas acções. Também as paisagens vivem desses traços. Elas são verdadeiras mediações entre um prescrever e um inscrever; implicam um momento do dizer e do insinuar. Nestes objectos (fotográficos) residem as fronteiras de um acto de converter uma (vida de) imagem, que procura a sua própria identidade e se constrói a partir de uma gramática de enunciados interrompidos de acção.

A complexidade defronta-se na imagem: o duplo olhar que limita a conexão de uma vida, também nos dá retrospectivamente a direcção de um campo prático: a fotografia equaciona a permanência no tempo pela confrontação entre duas versões de identidade, a numérica e a qualitativa. Numérica porque nos designa sob nomes diferentes («Continental», «Royal», «Embaixador» …) uma só e mesma coisa: hotéis. Construi-se uma reidentificação que nos leva a um conhecimento e a uma duplicidade do reconhecimento. Depois segue-se a «qualidade da paisagem»; essa semelhança que leva à variação e à diferença dos sinais expressos e à sua lenta e (mortal) substituição de uns por outros. Compõem-se identidades nestas fotografias, nestes «objectos», mas expõem-se identidades irredutíveis.

Essencialidades que, (não sendo estranhas umas às outras, pois todas respiram do espaço comum que são os hotéis e as paisagens); vivem de uma medida temporal que implica, na variação do seu aparecer, uma reidentificação e um saber que se fica devendo a uma continuidade ininterrupta.

Temos presente nestas peças (fotográficas) o entrecruzar de três momentos: potência, ambivalência e lentidão. Potência, como forma de desenvolvimento de uma dada matéria e de uma circunscrita memória. Ambivalência, como possibilidade de criar uma presentificação elementar e minimalista. Lentidão, como capacidade de «expressar» o que na verdade é virtual, segundo uma distância presente e real. Um «hotel» e uma «paisagem» mostram um rememorar e contêm uma presentificação imaginária; e traduzem uma projecção, uma medida e «vocação» para olhar o passado e o futuro. Rememora-se e presentifica-se e lança--se na distância o limite de representação: a paisagem é velocidade e ausência, positividade e fronteira que perfecciona o campo sensorial. Estes «hotéis» têm consigo a actividade transformadora e o poder terapêutico de que o viajante do olhar necessita quando transpõe os seus pórticos; a barreira que a própria faixa que conduz as palavras dos seus nomes encerra.

Sucessão e simultaneidade: paisagens e hotéis – eis a presença de um tempo que traz como mediação conceptual, a abstracção de todas as representações realizáveis.

[FERNANDES JORGE, João Miguel, “Manuel Valente Alves”, Jornal O Independente, Lisboa, 6 de Março de 1992]