[Manuel Valente Alves, “Princípios da Perspectiva Linear”, 1994]

PINTURA: O FIM INTERMINÁVEL por José Luís Porfírio

Exposições há, ao acaso da actuali­dade das galerias, que são importantes para o entendimento de um artista.

Outras, para além disso, tomam-se ainda mais interessantes porque, através dos artis­tas, podemos entender melhor o tempo em que eles e nós nos movemos. Falo de tempo e não de actualidade. Tempo é uma noção mais espessa, com pesos que permanecem, pré-visões e interrogações.

Neste momento da actualidade lisboeta há duas exposições que, nelas mesmas e no seu contraste marcante, ajudam a definir um tempo. São elas a de Pedro Casqueiro, pin­turas, e a de Manuel Valente Alves, «madeira, fotografia e vidro", isto é, caixas-objectos como suporte de imagens.

Valente Alves apresenta seis trabalhos, seis caixas negras enquadrando o confronto entre uma imagem fotográfica retrabalhada e saturada de cor (azul) e um traçado geomé­trico - o conjunto tem por título «Princípi­os da perspectiva linear». Desta vez, passa­mos do confronto entre imagem e não-ima­gem fotográfica (presentes em anteriores exposições, «Hotéis» e «Cassandra») para o confronto entre o informe da fotografia, ou melhor, da imagem que regista o desfazer de uma vaga e o formalismo geométrico de cada traçado.

O informe está na fotografia e a forma está no traçado que foi particularmente escolhido: trata-se sempre de um esquema fundador da visão perspética e monocular que domina a pintura desde o Renascimento aos fins do séc. XIX, e que é, também, o princípio fundador das máquinas ópticas, que estiveram na raiz da descoberta da fotografia. Em cada caixa, em cada imagem dupla, cada componente, remete para o seu par, num jogo que se abre a infinitas simulações. Que coisas são estes objectos, estas caixas negras? Eles trazem a memória de duas disciplinas, fotografia e pintura; eles não querem ser nem uma coisa nem ou­tra, constituindo-se num objecto híbrido, novo, que se institui como uma interro­gação sobre si mesmo. Ruptura? Não o creio. Dúvida, sim. Porém, encenada e construída como meticulosidade, com par­ticular empenho na visualidade e acaba­mento de cada objecto bem como no efeito de conjunto.

Se compararmos agora o percurso destes dois artistas, veremos:

- O primeiro como um pintor-pintor, que aparece nos começos de 80 com uma das obras que melhor ajuda a definir um renova­do gosto pela pintura, que nele assumiu um apetite devorador e imperialista, numa lin­guagem matérica que tudo podia digerir. O que acontece hoje é o resultado de um traba­lho sempre renovado e consequente, e o efeito de dispersão e encruzilhada da presente exposição, prolonga e noutra forma noutra matéria pictural, o saudável e devorador apetite inicial.

- Valente Alves é um homem da mesma década, pintor e fotógrafo com obra paralela que, voluntariamente, separava. Ao contrário de Casqueiro, o seu trabalho processa-se por crises, por saltos bruscos: na pintura, quase por uma violentação da matéria, na fotografia, por uma busca da luz que se traduz numa abstractização crescente. Nos anos 90, a pintura e a fotografia concorrem para a criação de objectos em que predomina o suporte fotográfico e, possivelmente, a presença pictural, objectos que são interrogações sobre a imagem, primeiro, sobre a não-imagem, depois. Agora, entre a forma e o informe, estas caixas aparecem-nos como objectos finais, tendo porém raízes, passado, tradições, e funcionando como uma dúvida em aberto quanto ao futuro.

Os anos 80 deram a Casqueiro e a Valente Alves um comum encontro com a pintura. No primeiro, ela foi uma prática devoradora e feliz, e no segundo, uma pulsão e uma dúvida crescente. Agora, com o ciclo dos regressos completado, é tempo de pintar e não. Casqueiro prossegue, Valente Alves interroga a pintura e a imagem.

Será que a pintura vive ou sobrevive? Tal questão deve pôr-se aos pintores, e eles respondem com o que sabem, como Casqueiro responde - pintando! Aí, a pintura é uma matéria aparentemente inesgotável.

Porém, que acontece quando se duvida, quando se abandona ou se sai uma vez mais desse campo? Com Valente Alves podemos verificar como essa meditação sobre o fim e os limites é um assunto que nos aparece, neste final do século, como interminável, gerando mimetismos, dúvidas, interrogações, que cada geração sente a necessidade de reactualizar.

[PORFÍRIO, José Luís, “Pintura: o fim interminável”, Jornal Expresso, Lisboa, 12 de Março de 1994]