[Manuel Valente Alves, “Princípios da Perspectiva Linear”, 1994]

DO PONTO DE VISTA DO HOMEM por João Lima Pinharanda

Na presente série, soluções de representação perspéctica - estabelecidas em tratados específicos, do tempo em que a Pintura (a «visão do mundo») se resolvia segundo (através de) essas abstracções geométricas e matemáticas -, são sobrepostas a imagens fotográficas do mar.

1.

Os desenhos situam-nos num tempo histórico preciso e num espaço geográfico delimitado também por duas estreitas fronteiras: o século XV e a Europa italo-flamenga; ou o transcurso do século XV ao XIX e o espaço cultural definido pela expansão colonial da globalidade civilizacional do Ocidente europeu.

As fotografias referem um valor universal e eterno. No âmbito das imagens que a Humanidade recebe (constrói) da Natureza, o mar com ondas é uma paisagem sem determinante histórico, nem geográfico, nem cultural; tão abstracto, portanto, como as imagens do céu com nuvens (que já fizeram a História da Fotografia, e que Manuel Valente Alves já desenvolveu também). No entanto, o próprio medi fotográfico tem uma determinante técnico-histórica (a da invenção da fotografia) e esta desencadeia uma alteração historico-cultural a da questionação da própria pintura como prática e entendimento do mundo enquanto mimésis.

As soluções estabelecidas pelos «Tratados da Perspectiva» forneciam à visão do pintor - e à do observador de Pintura - meios de resolução universal de todos os problemas de representação objectiva da realidade exterior. O Homem ocidental pós-renascentista esteve (durante quatro séculos) na posse de um instrumento canónico indestrutível. Mas a Fotografia, o desenvolvimento das novas teorias da cor, o contacto (não etnocêntrico) com artes de outras civilizações e o desmoronar definitivo de todas as restantes certezas do antropocentrismo optimista do renascimento reduziram a perspectiva à condição relativista de um instrumento de pensamento como qualquer outro.

2.

As imagens do mar utilizadas por Manuel Valente Alves parecem querer reforçar o seu estatuto (ou estado) de universalidade através da afirmação de um excesso: a saturação do azul, num elemento que, à partida, sabemos «ser» azul «por natureza»; a tomada das imagens do mar na perpendicular sem que em nenhum dos casos se torne visível a linha do horizonte ou qualquer tipo de profundidade perspéctica; a fixação de diferentes (múltiplos) instantes de uma superfície/textura que (como a do céu) nunca é igual mas que, por não ter referentes espaciais, também nunca é referenciável.

3.

Na construção desta série segue o autor uma metodologia discursiva que lhe é comum: a dualidade argumentativa ou a sobreposição de duas proposições - por vezes sem relação aparente entre si (não é aqui o caso) - de modo a obter uma outra. Trata-se de transformar simplicidade e linearidade em complexidade e, sem perder a eficácia argumentativa, insinuar a possibilidade de um território do não-dizível do poético.

A complexidade de sentidos desta série coloca questões na área da (história da) Pintura (sempre presente na obra fotográfica de Valente Alves) e da Fotografia (para além da coincidência do media); na área das modalidades de confronto/conflito da cultura/civilização ocidental com o resto do mundo (tema que viria a desenvolver em séries mais recentes); e, finalmente, em torno da historicidade da própria cultura ocidental (afirmação/desagregação de modelos - renascentista e contemporâneo, moderno e pós-moderno).

Ao confrontar (em associação paradoxal) duas imagens simples embora diversas Valente Alves não estará a limitar o campo de in(ter)venção; pelo contrário - não encontramos, por exemplo, no seu trabalho uma única resposta para as questões que vão sendo levantadas pelo próprio trabalho, isto sucede porque, embora lidando com conceitos que aspiram à universalidade, todo o seu trabalho é pensado do estrito ponto de vista do Homem-hoje - ele é (hoje) policêntrico, relativo, em deriva, incerto.

4.

É interessante (ou importante) notar que todos os efeitos de crise presentes nestas imagens são provocados a partir da associação de dois tipos de imagens que podemos classificar como imagens clássicas.

[PINHARANDA, João Lima, “Do ponto de vista do homem”, in “Portuguese Photography since 1854, Livro de Viagens”, Edition Stemmle, Kilchberg/Zurich, 1998, p. 193 e 220]