[Manuel Valente Alves, Hotéis, 1991]


HOTÉIS por João Lima Pinharanda


A presente série de obras de Manuel Valente Alves concretiza as problemáticas do seu trabalho

anterior, tanto fotográfico como pictórico. Este trabalho é (num clássico exercício de exploração das

relações entre significado e significante) uma interrogação sobre a representação do visível e sobre a

nomeação do visível ou a sua conceptualização. O artista desenvolve esse programa, quer através da

construção do espaço abstracto (na «natureza-morta» ou na «paisagem»), quer através do uso da

palavra, como desencadeadora ou complemento de sentido visual, como instrumento de definição e

deslocação semântica.

Por isso, aqui, a imagem é dupla: visual (a paisagem) e verbal (legendagem). Cada uma delas

remete (desencadeia) uma multiplicidade de sentidos díspares. Mas a conjugação forçada de ambas no

espaço físico e de visão único que é definido pela moldura provoca como que um pequeno choque ao

observador. Podem assim parecer-se, estas fotos, tanto com encenações distanciadas como

confessionais de uma «ausência» que o próprio autor quer transmitir ao observador. Essa ausência

resultará, não da expressão de uma consciência negativa, mas da aceitação da impossibilidade de

nomear; não da expressão de uma ironia magritteana sobre as oscilações entre significado e significante

mas da revelação dos desacertos (dos males) do mundo, da inevitável suspensão e separação do(s)

tempo(s), do(s) lugar(es) e do(s) sentidos; como se fossem o resultado de uma especulação sobre o

breve intervalo de atenção evidenciado pelo olhar parado de um epiléptico ou sobre os efeitos da longa

persistência da imagem paralizada aquela máquina fotográfica.

As imagens de Valente Alves existem como marcas de uma evidente nostalgia/melancolia. Este

sentimento desprende-se do jogo entre ambos os elementos nomeados (paisagem + nome de hotel) na

medida em que ele nos convida à reflexão discursiva. O valor poético dessa reflexão resulta no

desenvolvimento de uma atitude de simultânea estranheza e comunhão. Estranheza, relativamente ao

deslocamento sugerido; comunhão, relativamente à sobreposição proposta. E esta ajuda a vencer a

«distância» voluntariamente instaurada pelo artista — ou garante a sua concretização enquanto

mensagem da própria obra, formaliza-a, dá-lhe materialidade.

A melancolia assim entendida transforma-se numa empírica consciência crítica do mundo; nasce

do exercício conceptual proporcionado pelas soluções de reunião plástica de elementos aleatórios, entre

si alheios e de díspar estatuto mas tornados, por discricionária eleição, pilares de um discurso de

interrogação do mundo. Trata-se da exploração dos limites do visível e do dizível, suas coincidências e

desencontros, do risco de levar essa tensão até à fronteira da ilegibilidade, até à anulação dos

significados. A possibilidade da legenda ser interpretada também (ou apenas) como imagem (como

elemento visual fotográfico) é um exemplo dessa radicalização/dessa alteração de estatutos dos

elementos componentes das obras e sua disponibilização para encenações abstractas. A consciência de

que se podem assumir tais riscos discursivos é o que dá sentido produtivo à referida melancolia. A

possibilidade de supor um tal balanço entre os extremos da linguagem assume-se como uma incómoda

revelação e pode adquirir uma dimensão somática — a vertigem desse saber transforma-se numa

náusea, numa dificuldade física de suportar o mundo.

As paisagens surgem-nos como lugares desabitados — não desertos mas vazios (ou

esvaziados). O modo como se registam, delidos em sépia, reforça a ideia de serem lugares perdidos, "(já)

sem uso, (de novo) sem hábito de ocupação, sem costume de serem olhados — sem lei, portanto.

Imagens nuas e selvagens (ou em estado de se tornarem de novo selvagens, depois de terem sido

dominadas pelo homem).

Mas esta sugestão de um regresso ao original (ao natural) é contrariada pela nomeação aposta

(nomes estereotipados de Hotéis de grande luxo) que nos remete para o conceito de civilização, de

urbanidade, de construção — mesmo que apenas o façam ao nível da reminiscência verbal

desencadeada pelas legendas. Assim se une o que é cosmopolita (o Hotel) com o que é ensimesmado (a

ruralidade); e o que é particular e o que é universal torna-se coincidente, porque a imagem de um lugar

preciso (mas indefinido no espaço e no tempo, como o é quer uma paisagem quer um nome de hotel) se

torna arquétipo, isto é, universal.

O modo como a imagem é visualmente construída e simbolicamente evocada põe ainda em

causa a construção mental do espaço renascentista. A paisagem, aqui, desenvolve-se em extensão

horizontal mais do que prospectiva. O ponto de vista não é propriamente monocular e estático, definido

sobre o espaço cúbito de um palco, porque a imagem pretende tornar-se panorâmica, estereoscópica,

imitar a abertura do ângulo de visão humano, rompendo com a estaticidade do Quattrocento. A definição

do horizonte surge como mais importante do que a construção da perspectiva ou a localização de um

ponto de fuga. O horizonte divide o céu (com as nuvens) da terra (com as árvores, construções derruídas

e estradas); as relações formais entre estes planos e seus elementos de preenchimento completam o

jogo de linhas de força que explica a vocação bidimensional destas fotos, que as torna propostas

abstractas, também a nível visual. São afinal paisagens cortadas/incompletas; a nossa visão fica sem

poder de penetração, detém-se numa superfície, percorre-a horizontalmente ou desenvolve a sua relação

com o visível através do Verbo, porque sendo estas imagens imagens sem palavras possíveis (não

narrativas, não líricas) requerem o auxílio do raciocínio abstracto — a cor sépia reforça esse valor

imaterial do conjunto ao mesmo tempo que justifica a sua dimensão melancólica; a citação de cada um

dos Hotéis pretende alcançar os mesmos valores.

Estes trabalhos apresentam-se como exercícios de linguagem e de memória, testemunhos das

disponibilidades do discurso em vencer as diferenças de nível da enunciação e da possibilidade de

garantir o valor infinito dos significados, o sentido de todos os esgotamentos — na certeza de que...

depois há um tempo antes.



[PINHARANDA, João Lima, “Hotéis”, in catálogo da exposição “Hotéis”, CAM Fundação Calouste

Gulbenkian, Lisboa, Fevereiro de 1992]