[Manuel Valente Alves, “Et in Arcadia Ego”, 1995]

TERRA QUEIMADA por João Lima Pinharanda

As paisagens do Alentejo servem a Valente Alves para evocar a Arcádia. Mas o que podia haver de aprazível na relação estabelecida é-nos sempre negado. Porque se trata de lugares esquecidos; porque a existência da morte é soberana; porque a intemporalidade dos paraísos míticos e artísticos se opõem à crueza da história. O tema do genocídio e do massacre tem uma raiz tão funda como a memória da dor dos homens, o castigo... o perdão.

Manuel Valente Alves, fotógrafo, tem trabalhado recentemente (desde 1989) sobre imagens de paisagem. Uma primeira exposição (“Hotéis”, 1992) convocava horizontes abertos, planos calcinados. Elementos dispersos de vida vegetal, escassos sinais – raramente directos – da existência humana. A sépia das imagens acentuava a distância temporal, do espaço e de sentido, entre esses lugares e a legenda que os acompanhava, nomes de hotéis famosos no universo das míticas referências de viagem, literatura ou cinema.

Outra exposição (“Cassandra”, 1992), abandonando o chão, apontava ao registo do mais fixo e mutável dos elementos da paisagem, o céu – um céu sem horizonte, mudado pelo rodar das nuvens, um poço de vertigem ascensional. Ao mesmo tempo que cita a história da fotografia, cita-a nos limites da sua existência possível como imagem, ou seja, de ideia de identificável e inidentificável, de particular e de universal. A atribuição a cada um desses universais de uma nomeação particular imprime um jogo verbal reforçado pelo valor mítico e histórico co-literário a cada imagem – os heróis, gregos e troianos, alcançam como que um direito de inscrição estrelar num céu diurno, como que fixados nas constelações de nuvens que a cada um aleatoriamente calharam.

Enfim (“Princípios da perspectiva linear”, 1994), Valente Alves usou fotos de mar, elemento que partilha com o céu a radicalidade de uma imagem uniforme. Em complemento, o artista inscreveu os esquemas de um tratado renascentista de perspectiva, destinado a estabelecer as regras ilusórias de representação de objectos individuais num espaço dado a aperceber como tridimensional.

A Arcádia um dia…

Na presente exposição, o fotógrafo faz prova das possibilidades de uma arte interventiva existir para além da prática de um mero comentário sociológico e político. Valente Alves regressa aos cenários alentejanos, embora as imagens sejam significativamente diversas. O trabalho está dividido em duas séries. Um conjunto de cinco fotografias, de maior dimensão (114 cm x 170 cm) e outro de 24, de menor dimensão (29,5 cm x 19,2 cm). Na série principal mantém por um lado a ideia de desolação e acentua mesmo o peso violento da luz que queima todo o céu até o tornar branco e sem traço de nuvens.

Mas, por outro lado, não recusa os sinais da presença humana: casas abandonadas e barracas sem préstimo, carros perdidos ou percorrendo estradas silenciosas, cães que se substituem ao homem que o possui ou o abandonou ... Na série de trabalhos menores, há um elemento isolado na paisagem, uma árvore ou um grupo delas, que se apresenta como protagonista de uma situação que não é nem narrativa nem propriamente descritiva - apenas se dá a entender como presença em silêncio.

Ao contrário das exposições já descrit­as não há qualquer inscrição sobre o papel fotográfico. Os títulos existem à parte, numa vulgar tabela de parede, e foram atribuídos aleatoriamente ou existem de modo imperativo, globalmente aplicável, numa gigantesca inscrição de parede, branco aberto em fundo vermelho: "Et in Arcadia ego". Arcádia idealiza um paraíso pastoral greco-latino, lugar de prazeres, paz e distância relativamente à confusão do mundo, metáfora para a perdida Idade de Ouro original.

A inscrição, que pode ser entendida co­mo outra peça da exposição, autonomizável ao mesmo tempo que integradora, repete uma citação latina glosada a partir de uma tela de Guercino, mas tornada famosa nas duas versões pictóricas de Poussin (século XVII) e sucessivamente reutilizada no sé­culo seguinte. Sobre uma lápide tumular, o pintor escreveu "Et in Arcadia ego". O que querendo original e cruamente dizer “mesmo na Arcádia eu [a morte] existo", foi evoluindo para a dimensão da evocação nostálgica de uma personagem, para um “também eu já vivi na Arcádia".

As paisagens propostas por Valente Al­ves são desde logo marcadas por um sentimento humano que se cruza e, ao mesmo tempo, se afasta de qualquer dimensão dourada ou heróica. Essa dimensão meramente humana percebe-se no pesado, ainda que discreto abandono ou esqueciment­o das coisas humanas pelo homem: as construções, os objectos. Por isso, a identificação da planura alentejana com o refe­rente grego (mítico e real, que poderia ser tranquila ou poeticamente alcançado na série designada por "Hotéis" (se esse fosse o seu objectivo de então), é agora impossível de se estabelecer.

Os convencionais pastores arcadianos de Poussin desvendam-nos uma discreta inscrição tumular deixada à nossa conside­ração reflexiva. Valente Alves grava a ver­melho e branco, sobre uma parede de dez metros a mesma legenda. Somos nós que imediatamente a lemos sem que nos seja apontada, mas imposta como um "slogan" publicitário capaz de acrescentar uma dimensão crítica à original tarefa de entendi­mento ontológico.

As imagens que podem não ser tão absurdas e violentas…

Em que termos somos conduzidos a reflec­tir sobre a morte? Ou sobre que morte? Parece que não directamente sobre a nossa ou sequer sobre a morte como conceito abstracto. A última chave interpretativa da mostra encontra-se nos títulos atribuí­dos a cada imagem. Identificam, as fotos grandes, seis genocídios deste século; e as fotos pequenas, outros 24 massacres do mesmo período.

Todo o peso de sentido do trabalho apre­sentado assenta assim, de novo, na desloca­ção conseguida entre a imagem e a sua no­meação, embora aqui essa deslocação não se faça por oposição de símbolos, como se pode dizer da série “Hotéis” ou por inversão poética, como se pode dizer da série “Cas­sandra", ou por absurda sobreposição, como na série ”Princípios de perspectiva linear". Antes se propõe um paralelismo entre ele­mentos, concebido de tal forma que cada membro implicado nessa operação de com­paração é sujeito a um extremo de violenta­ção.

Somos levados a perceber que a imagem real de um massacre acompanhada pela sua legenda real pode não ser tão absurda e tão violenta como a solução aqui alcançada - o horror mais fundo do nosso ser individual e colectivo é convocado não pela ilustração de um acto, mas pelo registo de uma sombra de luz encandeante, de uma imagem-espelho, um indício.

A mediatização global das imagens jor­nalísticas dos massacres e genocídios e da sua identificação serial condicionou a nossa receptividade, anestesiou os nossos sentidos para a sua brutalidade. Mas somos aqui confrontados com uma simples composição nostálgica, evocadora de uma memória de paisagem feliz, mas invadida, afinal, por si­nais de impureza, disfuncionamento, blo­queio ou incomodidade. O sentido de absur­do (não das imagens mas) dos factos (não evocados mas) convocados torna-se então claro - a uma luz tão crua como a que ex­plode nos céus, sobre estes campos.

Cruzam-se e desmultiplicam-se nesta exposição os sentidos da, evocada legenda la­tina: "Existe a morte no paraíso, por isso o paraíso já não existe; e têm um nome os que morreram [foram mortos] no lugar onde es­se paraíso em algum tempo poderá ter exis­tido." Podemos talvez arriscar as dimensões mais finas da ironia, mais cruéis do sarcas­mo e mais profundas da amargura para ca­racterizar este processo de construção (em imagens que se negam) da história crítica de uma humanidade que se nega sobre a terra por si mesma queimada.

[PINHARANDA, João Lima, “Terra Queimada”, Jornal Público, Lisboa, 12 de Maio de 1995]