[Manuel Valente Alves, “Et in Arcadia Ego”, 1995]
O PODER DAS IMAGENS por Isabel Carlos
A primeira visão, dominando a sala maior da galeria, é o vermelho da parede frontal com a inscrição em letras brancas – “Et in Arcadia Ego.”
Nas paredes laterais, fotos a preto-e-branco de paisagens rurais (114x170cm). A aproximação é, assim, claramente estética e gráfica, de um gosto disciplinado e cultivado pela visão artística. Perante um segundo olhar, este aparente prazer plástico é inesperadamente perturbado pela própria legenda, na qual se lê: «1915-16 -Império Otomano: genocídio arménio organizado pelos jovens turcos.» Olha-se de novo a parede, e o seu vermelhão é já mais do que simples cor - é sangue e poder. Cada paisagem apercebemo-nos então - é percorrida pela desertificação, por uma desolação quieta e surda, apesar dos vestígios humanos que ainda encerra. As cinco paisagens são fotografias do Alentejo, acompanhadas de uma legenda ou título que, à semelhança da primeira, informam sobre um dos genocídios praticados neste século. Na segunda sala encontram-se 24 fotografias de árvores isoladas na paisagem. Os títulos remetem igualmente para diversos massacres de raças ou etnias perpetrados no (nosso) século XX.
«Eis-me no paraíso», poderia dizer a inscrição da galeria. Que paraíso atópico é este? Que contradição se encerra nestas secas paisagens alentejanas, que enigma iconológico convocam elas?
O pequeno «dépliant» que acompanha a exposição não podia ser mais explícito da atitude e intenção do artista. Em texto escrito por V.A. lê-se: «Et in Arcadia ego» é uma frase latina inscrita num sarcófago representado em duas famosas pinturas de Nicolas Poussin (l594-1665) sobre os pastores da Arcádia. Segundo Panofsky, “et in Arcadia ego” significa “a morte existe até na Arcádia”. A Arcádia é uma região seca e pobre do centro da Grécia que se tornou, pela pena de Virgílio, um modelo de paraíso. Há, pois, uma discrepância entre a visão idealizada de Virgílio e a verdadeira Arcádia, rude e severa, mais próxima da tragédia do que do idílio. Na verdade, o que Virgílio fez foi criar um conceito, uma utopia que lhe permitisse pensar o mundo, baseado nas suas contradições.»
A relação entre arte e realidade é, assim, desde logo, assumida como um problema paradoxal. Denunciar uma injustiça ou um crime através da expressão artística resulta quase sempre num objecto ou numa imagem portadores de uma mais-valia estética e decorativa que de algum modo trai o seu ponto de partida.
V.A. parece estar tão consciente deste facto, que decide voluntariamente operar o movimento contrário, baralhando os dados (ou, no mínimo, alertando para o problema), partindo propositadamente de registos fotográficos aparentemente inócuos e até sedutores - as paisagens - para depois os submeter a um enquadramento social e político através do título de uma extrema dureza, porque é seco e frio, da ordem de um cientifismo quantitativo e cronológico «positivista» e incontornável enquanto evidência e testemunho. Tais títulos, retirados de uma listagem feita por Yves Ternon também ele médico, tal como V.A. - foi publicada em L'Étal Criminel (Seuil, 1995).
Do ponto de vista do seu conteúdo ou da sua estratégia conceptual, este trabalho não é inusitado na carreira artística de V.A. Recorde-se, a propósito, a série «Hóteis» mostrada em 93 no CAM, na qual os nomes de célebres estâncias de turismo são acompanhados de imagens que deslocam o sentido de leitura, enunciando territórios desabitados ou de sonhos de paisagens atmosféricas.
Num mundo em que as imagens de genocídios idênticos aos aqui nomeados são veiculadas todos os dias como espectáculo pelos «media», a afirmação paradigmática da era contemporânea de que «uma imagem vale mais do que mil palavras» é aqui claramente posta em causa; e a exposição assume assim uma dupla função: por um lado, alerta para o facto de o nosso século ter sido o século do «Estado criminal» que segregou e praticou a morte colectiva de faixas inteiras da população em nome de princípios políticos, religiosos, éticos e raciais; por outro, questiona o regime das imagens e o seu uso na sociedade actual.
[CARLOS, Isabel, “O poder das imagens”, Jornal Expresso, Lisboa, 20 de Maio de 1995]