[Manuel Valente Alves, “Donde vimos? O que somos? Para onde vamos?”, 1999]

MICROFÍSICAS DA MORTE «LIMPA» por Francisco Rui Cádima

I.


Passados 25 anos sobre o 25 de Abril, no derradeiro fim - para muitos cidadãos do Mundoverdadeiramente apocalíptico do final do milénio, numa qualquer manhã desse mesmo mês de Abril, poder-se-ia escutar, numa qualquer estação de rádio, uma sequência noticiosa de conteúdo idêntico centrada nalgumas cidades do mundo: Kukes, Pristina, Malange, Dili...

A morte caíu sobre essas cidades, por vezes ainda mais violenta do que nas imagens dantescas dos horrores milenaristas. No Ocidente cristão, pulverizado pelas imagens provenientcs quer de sofisticados sistemas de informação geográfica, quer através das novas realidades bélicas ditas virtuais, ou ainda via simples takes do sistema mediático tradicional e da mundovisão, assistimos incrédulos à nossa própria impotência. Um pequeno passo apenas - das limpezas étnicas à limpeza da consciência e da memória.

No fundo, poder-se-ia dizer que a estratégia iluminista não foi mais do que a afirmação e a lenta consolidação de uma impotência vital, que se centra precisamente - paradoxalmente -, na essência do modelo cultural judaico-cristão - a questão da partilha, a questão da solidariedade.

Primeiro através do programa do cristianismo, depois através do quadro conceptual do iluminismo, mais do que alargar a partilha, o que o Ocidente fez foi alargar a exclusão, dividindo para reinar. E prossegue agora a sua ordem de trabalhos, gerindo e negociando pequenas contradições internas, deixando o velho e menos sábio Continente na dependência dos aventureirismos do assim chamado «Novo Mundo».

Daí se dizer, com propriedade, que o iluminismo foi essencialmente exclusão. Exclusão do desviante, exclusão do outro. Mas exclusão em si próprio. Esta será certamente uma das mais violentas feridas narcísicas da humanidade.

Reflexões que emergem com todo o propósito na sequência da “reedição”, em tempo útil, da exposição de Manuel Valente Alves «Donde vimos? O que somos? Para onde vamos?». Aí se questionavam já alguns dos preocupantes aspectos da assim chamada «barbárie moderna». Que regressam agora. Daí este nosso percurso, por vários andamentos de uma narrativa textual, pequenos fragmentos apenas de um questionamento que procura reflectir as mnemotécnicas do campo de medição e a sua própria ontologia.

II.

Mas, ao princípio, era o verbo. E a grande censura situava-se então no plano dos signos e dos códigos convencionais. Para Platão, a escrita não era mais do que um simulacro do real, uma arte da ilusão, tal como aliás a pintura também o era, de forma quase obsessiva. Platão via assim o acto de delegação do saber na escrita como uma clara perca do sujeito, dado os caracteres obrigarem a uma mnemotécnica, a um conhecimento técnico que desabituava do esforço interior e que, portanto, engendrava a ilusão de um saber não crítico e facilmente adquirido para ser solidamente fundado. A escrita surgia assim, em Platão, como uma espécie de fim da techne. Os hard media a tanto obrigavam. Mas doravante a dominação far-se-ia cada vez mais no espaço e já não no tempo, no tempo imperial. O arbítrio do déspota tinha agora que enfrentar não a sobrecodificação mas o fluxo desterritorializado de escrita.

Muito faltaria ainda para Michel Serres dizer que a revolta contra o ruído era a revolta moderna do reino de Hermes, isto é, do reino dos media.

Transcorrido que foi um curto tempo de predomínio da técnica democrática sobre a techne, sobre a técnica democrática, que liberdade reivindicar à tecnociência, sobretudo quando o discurso se legitima segundo a performatividade dos seus enunciados, ou quando sucede esse outro delírio de autolegitimação da técnica que dá pelo nome de guerra virtual ?

Se a história se revê ainda nas narrativas do mundo, o futuro da história rever-se-á muito provavelmente num mundo de narrativas de tecno-imaginários. A razão moderna e os imaginários analógicos perdem-se assim nesse espaço disseminado, nessa fronteira difusa entre o acontecimento-ocorrência, na sua efectiva realidade, e o acontecimento narrado, na sua virtualidade.

E, de facto, se o racionalismo clássico não foi então, de todo, o instrumento libertador do homem pelas Luzes, mas sim um instrumento carceral, de sujeição e exclusão do homem, já para Lyotard, na racionalidade pós-moderna, o novo estatuto da razão é indubitavelmente tornado da ideologia tecnicista, sendo a transparência da comunicação uma espécie de novo cárcere.

Nova censura também, na era algorítmica. O sentido despótico do novo fluxo de imagens - as imagens numéricas - impõe doravante. com uma eficácia radicalmente nova, a preexistência absoluta da imagem em relação ao objecto representado. O escândalo ontológico será aqui total. Constante fabulação hiper-real, demencial, perversa, que se substitui ao real por estórias que, ao contrário das fabulas, são efectivamente histórias em que todos acreditam. Resta saber ainda se a experiência estética deixará de compartilhar o mesmo, e as suas hibridações, das quais a mais temível será a hibridação-limite, transição do corpo biológico para o corpo-terminal, bio-maquínico.

O êxtase do real, a fabulação hiper-real marca-nos indelevelmente o ser. Daí ser urgente encontrar formas de coabitação entre a irreversibilidade das fábricas de sonhos - dos imaginários à política e aos media -, e a necessidade de um apaziguamento dos conflitos entre o homem e o mundo. Dir-se-ia estarmos perante irreconciliáveis... Ora, se estamos. aparentemente, pelo menos, perante essa realidade modelizada pelo imaginário total e pelos tecno-imaginários, e se a sua resultante hiper-real se configura sobretudo no dispositivo comunicacional de fim de século, será então a altura de nos confrontarmos com esse ruído, essa sobreinformação, essa anomia, autêntica crise de solidariedade entre o sentido e o ser, que se autoprocria extasiada, ultrapassando o seu, por assim dizer, limite funcional óptimo. Essa será porventura a questão essencial.

Reivindicando o retorno da techne, será mais visível, em plena sociedade mass-mediatizada, um primeiro confronto entre a hipertelia que degenera em obsolescência, em desaparecimento gradativo, e a arte dos pequenos passos. Confronto que se poderia ver, mais explicitado, entre aquilo a que Balandier chamava um messianismo científico-tecnológico e uma prática minimal, criativa, local, da técnica maximal, como forma de obviar a uma configuração da própria racionalidade tecno-imaginária em racionalidade de dominação massificante.

Lewis Mumford via a tecnologia autoritária centrada num sistema, imensamente poderosa mas pouco estável, a outra, a democrática, centrada no homem, relativamente débil mas duradoura e pictórica de recursos. Transpondo para o universo mass-mediático, dir-se-ia que do que se trata é de facto de libertar as sujectividades dissidentes através de sistemas de mediação hipoconcentrados em oposição aos sistemas hiperconcentrados que caracterizam o dispositivo comunicacional moderno, depositário de uma razão que se confunde em racionalidade de dominação. E aqui já se vislumbra um pouco essa oposição «local» versus «global» como essencial ao retorno da experiência essencial da comunicação.

Gillo Dorfles apelava a uma nova «poiética», a uma cxpressão criativa, minimal, através, por exemplo, de uma nova expressividade visual que o vídeo comporta. Nos anos 80 todos estes apelos críticos ressoaram mas, convenhamos, sem grandes resultados. A dificuldade em contrapor as micropolíticas à política tem sido de certa forma a responsável pelas novas barbáries. Não são suficientes nesta estratégia fenómenos como a maîtrise de soi (Foucault) ou os minimal self (Lasch). Dir-se-ia que à dificuldade em contrapor uma política dos self/cyber media à velha sociedade mediática, acaba por prevalecer um regime de reapropriação do eu, radicalizado pela técnica e refractário de certo modo aos seus usos. Mas, de facto, o retorno da techne não é plenamente compatível, por assim dizer, com as diferentes reciclagens intimas do sujeito. O que se joga com a realização pessoal, com as técnicas do eu, não se deve alhear de uma experimentação atomizada - ou mesmo «bitizada» -, dos possíveis tecnológicos da sociedade mediatizada. No limite, diríamos, que do que se trata é de inflectir os fluxos através dos quais se radicam os bio-poderes e os dispositivos de dominação. Porém, no pós-Guerra, e mais em concreto nas últimas duas décadas do século, as guerras virtuais e as guerras mediáticas demonstram a dificuldade de verificar esse ponto de inflexão.

III.

Recorde-se ainda por uma vez o caso da Guerra do Golfo. E faça-se um rápido flash­back.

Se bem que numa fase já adiantada da Guerra do Vietname e após o efeito dissuasor que a televisão teve então junto da opinião pública norte-americana, nomeadamente através das reportagens de Walter Cronkite na CBS, mostrando os horrores da guerra, os conflitos que se lhe sucederam - Falklands, Granada, Panama e logo depois o Golfo, e agora o Kosovo/Jugoslávia, foram marcados por uma rigorosa censura militar dirigida sobretudo aos diferentes operadores de imagens. A guerra resolvia-se então na sua dupla dimensão electrónica e mediática, através, por assim dizer, da boa gestão de todas as imagens.

As imagens das guerras - e dos seus palcos - tornavam-se assim numa verdadeira carta que precedia o território. Em primeiro lugar, obviamente, atraves das fotografias de alta-definição enviadas dos satélites - que também o Iraque, aliás, havia adquirido à empresa francesa Spotlmage, antes de invadir o Koweit. E em segundo lugar, em resultado essencialmente das imagens veiculadas pela televisão, que devido aos efeitos que têm na opinião pública, podem dissuadir os próprios estrategos nas suas pretensões mais imediatas, provocando assim uma redefinição dos objectivos políticos e militares e trasladando algo de essencial na disputa do terreno bélico para o campo dos media. Recorde-se que para além do black-out, os Estados Unidos proibiram as honras militares na chegada das primeiras vítimas da guerra.

É importante no entanto notar que todos estes últimos conflitos têm gerado nas suas fases determinantes um reduzido acervo de imagens e de informação em geral e isto porque existe essa aparente incompatibidade entre a opacidade da operação militar e a «virtual» transparência dos media. Verdadeiramente, uma e outra estarão mais próximas do que habitualmeme se pensa.

IV.

Telerealidade, memória e esquecimento são assim alguns dos parâmetros centrais do dispositivo comunicacional clássico. Tal como a sua instrumentalidade, o seu regime logotécnico, a sua performatividade.

No Ocidente, a década de 80 ficou marcada pela progressiva fragmentação dos sistemas audiovisuais, o que determinou, por assim dizer, o fim da inscrição dos consensos como forma de memória específica do écran catódico, ele próprio interface neutralizador de todas as distâncias e da temporalidade.

À lógica «consensual» dos anos 60-70 sucede aparentemente uma lógica de indiferença que deriva da virtual multiplicidade das escolhas dos anos 80. Este distanciamento, a ser possível, rapidamente se esgotará numa lógica de perversão que as estratégias dos grupos económicos e de comunicação desenvolvem no sentido das hiperfusões e da criação de grandes conglomerados mediáticos. O fenómeno da concentração no campo dos media tem-se constituído de alguma maneira como paradigma neste final de século, ainda que por vezes de forma contraditória e em registo de opostos, como no caso da dicotomia local/global.

Em qualquer dos casos, no plano discursivo, quer se trate de um fenomeno de recomposição ou de fragmentação, no ecrã esbatem-se sempre o tempo e o espaço, sendo reduzidas as possibilidades de nos fixarmos apenas numa imagem. Pelo contrário, é a totalidade das imagens que se fixa em nós. Já nada acontece ao homem, e às imagens que tudo acontece, e é portanto este excesso que neutraliza também as condições de possibilidade do exercício da memória: a queda do Muro de Berlim desenrolava-se entre Brandenburg e as câmaras de TV, como se o próprio Muro fosse uma tela sem memória nem fundo. Nele, começava assim também a nossa ignorância.

O esquecimento é-nos imposto por esse excesso, por esse fluxo descoordenado que torna impossível restituir a continuidade perdida - e sofrida - de uma história. É já de um fenómeno de indiferença que se trata, resultante da torrente inebriada da logotécnica, errância de que a um outro nível o zapping e os efeitos-série constituem paradigma.

O que fica exposto é sobretudo a crise do próprio dispositivo abstracto de enunciação do mundo, bem como, em consequência, o paradoxo da crise dos consensos, que alternam entre uma lógica de indiferenca e uma lógica normativa.

A televisão, no entanto, ao integrar o acontecimento no seu fluxo homogeneizante, molda-o ao seu dispositivo enunciador, adequa-o ao seu regime tecnodiscursivo, espécie de palimpsesto electrónico cuja finalidade, ou modo de desvelamento, é deixar aparecer o que de seguida se esquece.

Neste confronto excessivo com o espaço impossível da telerealidade, um novo espaco-tempo emerge, reconfigurando a natureza hiper-real dos media no tempo real da velocidade audiovisual como sugeria Virilio, o qual suplanta em definitivo a presença do espaço real, dos objectos e dos lugares.

Mas mesmo que assim não fosse, isto é, mesmo que no limite, fosse possível, como na fotografia, deter a história numa imagem, deparar-nos-íamos de novo com o diferendo: possuir a prova, o testemunho, mas confrontarmo-nos com o facto de o homem se constituir por uma faculdade activa do esquecimento, por uma espécie de recalcamento da memória biológica, entregando-se aos sistemas da crueldade, aos inventários domesticadores.

Estes são os traços estruturais da sociedade contemporânea a que já se chama a sociedade espectral: toda a política é fundada sobre o esquecimento e o problema surge quando admitir este necessário esquecimento é abrir a porta a todas as reescritas da historia, permitindo novas e imemoriadas reapropriações.

O esquecimento gera então o monstro. E é nessa denegação do acontecimento que os novos holocaustos aguardam a sua hipertelia.

V.

Mas eis-nos chegados à ordem interactiva, mirtífica salvação dos novos deserdados da terra. Importa aqui sondar se a interactividade se fica apenas no seu registo técnico, saber se ela não será mais do que a metafora da sociedade da abundância tecnológica tornando-se a miragem da sociedade das proezas tecno-sociais. Será assim, inevitavelmente, um campo de marginalização de amplos sectores da população, o que exigira um imperativo equilíbrio entre o nosso subdesenvolvimento tecnológico e o subdesenvolvimento social. Entramos assim na era do transpolítico. Numa modernidade que se recompõe por adições complexas: o movimento mais a incerteza. Ou por oposições definitivas: o mundo da vida mais o sistema da eficácia. De onde resultam as crises do paradigma do progresso, as passagens da finalidade à hipertelia; dos equilíbrios orgânicos aos seus clones: dos (des)equilíbrios pelo terror: da legitimação pela representação ou pelo extase do real.

É, portanto, crucial pensar o programa de mudança de milénio. Ao paradigma da produção sucede agora uma nova reciclagem do paradigma da comunicação. E nesta violenta mutação joga-se uma ruptura dramática no dispositivo comunicacional. Nesse aspecto, o controlo do virtual é decisivo para que a nova Telépolis não fique exposta aos olhares da insondável totalização e às suas maquinações. Os novos media preparam, no fundo, uma outra convergência - a dos neurónios com os chips, dessacralizando (?) as fobias bio-tecnológicas. Na era do mundo de possíveis que a tecnologia disponibiliza, o inumano pode ser a modelização, a clonagem. Mas facto é que, como afirmava Lyotard, onde está o perigo está aquilo que liberta.

De qualquer forma, a crise do paradigma do progresso - a questão do Ozono, a Sida, o Nuclear, a fome, a limpeza étnica e a morte «limpa» -, enfim, as suas obscenidades, o seu extase, verificados pelas hipertelias do que está para além da ordem natural das coisas, são parâmetros a levar em conta no novo dispositivo comunicacional e societal. Através deles verifica-se de algum modo a colonização do mundo vital, do lebenswelt, pelo sistema da eficácia e por um regime simbó1ico que é de algum modo apocalíptico, embora numa dimensão não antropológica - a elisão do corpo pelo sujeito estatístico. A própria legitimação do político emerge a partir do «outro», pela representação e pelo desempenho mediático. Estamos, portanto, perante diferentes crises antropológicas - de legitimação dos saberes, da representação, e do social.

Mas perante os perigos da interactividade técnica, ou parente os mitos da cibernação, ha uma realidade que permanece como espécie de virus: a empatia pelo fluxo, pelas logorreias televisivas, pela gratuitidade da desagregação brutal do tempo nas reduzidas dimensões de um qualquer pequeno ecrã.

Porém, as práticas e as representações singulares da arte vdeo, por exemplo, expõem sobretudo o trabalho de memória que resiste ao seu processo de dissipação, conjugando o presente na sua vertigem atemporal, em pleno devir sem retorno, denotando ainda essa irreconciliável tensão entre a tecnociência e os processes de individuação do eu.

Se ao vídeo cabe assim o desvelar dos segredos do sujeito, ou apenas das singularidades, à televisão resta-lhe a prosa do mundo, ora recalcando ora recriando a memória. Estes contrários exprimem finalmente a tensão existente entre uma ideia de liberdade e o desencanto pelo dispositivo clássico da televisão, conflito que dificilmente o seu dispositivo tecnodiscursivo superará, o que será suficiente para que os dissidentes do media nunca o reconheçam como objecto plenamente democrático.

Sem dúvida que uma guerra em directo pela TV teria sempre os seus efeitos junto das opiniões públicas. E certo que há por assim dizer uma inaptidão essencial para políticos e militares, na prossecução cega dos seus objectivos, integrarem, interiorizarem, o sentir do tecido social e a experiência participada.

É neste novo regime que aparece a CNN. Com os seus múltiplos satélites a actuar em simultâneo, reduzida à terra a aldeia global de McLuhan, a CNN surge como uma espécie de super-agência noticiosa. Se Dick Chaney achava que a CNN era «o melhor relatório sobre a situação em Bagdade», a verdade é que a rede foi criticada durante o conflito do Golfo por se exceder como «canal diplomático» e deixar-se instrumentalizar como canal de propaganda. Recorde-se nomeadamente a questão dos reféns estrangeiros no Iraque, no início do conflito, ou o facto de a CNN ter acabado por ficar, sob apertada censura, segundo se dizia, praticamente como a única janela de Saddam Hussein aberta para o mundo.

As imagens insuspeitas continuavam ausentes. Continuou-se sem se poder julgar pelos seus próprios olhos. O horizonte de acontecimento continuou sob custódia - e a democracia catódica tornou-se o lugar de uma duplicação do mundo e ficou rigorosamente vigiada. Televisão e rádio cedem aos directos, numa narrativa incoerente, num fluxo informativo indiscriminado, quase não dando tempo a que nos interroguemos sobre os factos e as suas causas, concedendo que tal viria a pôr em causa o próprio sistema de informação em tempo de guerra. É a assunção lógica da eficácia do gesto irreversível - no fundo, aquilo que caracteriza a emergência do próprio acontecimento mediático. Chega-se inclusivamente ao ponto de descobrir coincidências não fortuitas, entre o programar televisão e o programar a guerra. Como no fait-divers, no acontecimento irrelevante, o crime time exige o prime time.

Mas não estará a nova ordem do mundo de que falava Bush, finalmente a ser criada pelos efeitos da lógica mediática e pela «consciência televisiva do mundo»? Como dizia Nietzsche, a verdade do mundo, no final, torna-se fábula. E as ficções dos media, quer sejam dissuasoras, até eventualmente imparciais, ou espectaculares, tomam o lugar do real, tornando-se o princípio da realidade. O sistema televisivo unívoco, no entanto, não sucumbe aos bombardeamentos... O seu dispositivo tecnodiscursivo, irredutível a qualquer fim da história ou das ideologias, prossegue a sua tempestade sobre as consciências. Essa é a guerra limpa por excelência.

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