[Manuel Valente Alves, “Donde vimos? O que somos? Para onde vamos?”, 1999]

ALEGORIAS DO MEDO por Eduardo Prado Coelho

Pressuponho, como é óbvio, que a descrição do dispositivo já foi feita por outros, melhor do que eu saberia fazer, e é conhecida de todos. O que nele se indica num primeiro lance é algo que poderemos designar como o "sentido óbvio". Esse sentido considerado "óbvio" tende a aparecer como um sentido "político", na medida em que os enunciados políticos se alicerçam numa delimitação de campos muito nítida: o do Bem, o dos amigos, o dos amigos do Bem, e o do Mal, o dos inimigos, o dos amigos do Mal. Neste caso, na distância que vai de Giorgione (digamos: 1500), e uma fotografia da NEWSWEEK (1995), assinada por Bernard Hermann, estabelece-se uma linha divisória que já se entrevê em Giorgione: entre a natureza, a pureza, a serenidade, das personagens que estão em primeiro plano e a atmosfera ameaçadora que as rodeia (entre as forças da vida e as forças da morte, para dizermos bem e depressa). Na revista, na fotografia e no artigo de John Barry que acompanha a fotografia, surge como que uma actualização do tema primitivo: a ameaça tornou-se tecnológica, ganhou uma dimensão maquínico-humana, insere-se numa certa loucura dos tempos, dos aparelhos e dos seres, faz parte de um estranho programa de suicídio colectivo. Numa primeira leitura, o curto-circuito; interpretativo cria, através de um processo de intemporalização, uma entidade metafísica: os homens-tal-como-eles-são, a que corresponde a pergunta central do título de Gauguin entretanto convocado: "o que somos?" (que tem o aspecto suplementar de reflectir sobre os homens a partir de um "nós", embora evitando dizer "quem" e ficando apenas por um mais neutro "o quê?”, autoriza outras interrogações: seremos animais? ou máquinas? ou já animais em vias de serem máquinas?).

Como escreveu Manuel Valente Alves para a apresentação do vídeo "Hotel Europa", "a históna da Europa não é hoje fácil de contar. Nos tempos que correm (do pós-colonialismo ou do neo-colonialismo, como lhe quiserem chamar), a imagem do colonizador gera quase sempre um certo desconforto, uma má consciência da história. O que não é inteiramente justo. De facto, o problema reside, a meu ver não propriamente no europeu, mas no homem em geral, independentemente da sua época, cultura, condições e contradições (desculpas). O Islão, por exemplo, ao apoderar-se da África do norte no século VII, não agiu de maneira diferente da França em 1830 e nos anos seguintes". Passamos assim de um "homem historicamente situado" rara "o homem em geral” ( o que desconcerta qualquer perspectiva política). Do Dois do conflito entramos no Um da ontologia. Fomos metafisicamente repatriados - mas por quanto tempo?

A minha convicção é que esta oscilação mais ou menos premeditada entre o Dois da política e o Um da metafísica só tem sentido em função de um Três. Vejamos como. Em primeiro lugar, estamos perante um tríptico. Isto é, vamos de Giorgione até à fotografia da NEWSWEEK através de um título de Gauguin, que por sua vez é tripartido: "Donde vimos? O que somos? Para onde vamos?". O mais interessante é que este título, como qualquer título enuncia um tema, mas neste caso designa também a ausência do quadro que o sustenta. Donde, a oscilação entre Giorgione e a fotografia de Hermann é atravessada por uma instância terceira não visualizável de imediato (embora possa ser evocada de memória ou recuperada por consulta a um livro sobre Gauguin). Digamos que em Gauguin a figuração correspondia a uma certa ideia utópica de uma natureza reconciliada com o próprio homem - e é a ausência disso que faz sentido no interior da exposição de Manuel Valente Alves. Esta estrutura repete algo que o título tripartido dá a ver: a resposta à pergunta sobre o lugar donde viemos e aquele para onde vamos só se normalizaria se pudéssemos saber, no arco de uma natureza que se abre do nascimento à morte, "o que somos".

Mas a mesma presença do Três-em-falta se propõe no quadro de Giorgione. Como se sabe, e Manuel Valente Alves tem o cuidado de lembrar, houve múltiplas interpretações desta obra consideravelmente enigmática. Uma delas, mais difusa, poderá ver nas personagens da mulher que amamenta uma criança e do soldado que a olha num sorriso feliz uma figuração do tema da expulsão do Paraíso (isto é, das ilhas paradisíacas que Gauguin entreviu e pintou), mas esta expulsão teria um sentido humanistamente positivo: a partir de agora, cabe aos homens e mulheres inventarem o seu próprio destino, rompendo com o lugar donde vêm e dizendo que são apenas aquilo que forem capazes de fazerem de si mesmos na linha do futuro para onde se dirigem. A interpretação que Manuel Valente Alves sugere é de tipo mais iconográfico: a mulher significa a Caridade, o homem a Coragem, e pretender-se-ia dizer que em tempos de crise a Coragem e a Caridade se devem unir para salvar os homens. Como em todas as interpretações deste tipo, sentimos um elemento deceptivo. E precisamos de reencontrar no quadro a opacidade das matérias para nelas recuperarmos um verde-castanho disseminado numa espécie de fina textura ontológica em que, sob o signo da melancolia inevitável, sentimos uma circulação envolvente e afectiva, como se da própria pintura emanasse uma suavidade silenciosa e maternal (curiosamente, e tanto quanto posso saber a partir dos elementos de que disponho, a cópia-citação que Manuel Valente Alves faz do quadro de Giorgione acentua o carácter ameaçador dos elementos, que formam agora uma cercadura castanho-avermelhada em que descobrimos na árvore à direita um certo contraponto à nuvem de luz e fogo que resulta da explosão francesa no Pacífico).

Não podemos esquecer que para Manuel Valente Alves a ideia de "impulso alegórico" (que serviu de designação para um ciclo de leituras por ele organizado), recolhida num texto famoso de Craig Owens significa exactamente isto: pegar numa imagem do passado e relê-la em função de uma imagem do presente, não para encontrar o sentido verdadeiro, mas para, através de um estremecimento ou hesitação inerente a um sentido terceiro que nesta relação emerge, salvar o que doutro modo tenderia a desaparecer no decurso devorador dos tempos. Donde, a técnica alegórica permite que se estabeleça um processo de leitura recíproca, em que por um lado se toma consciência de que tudo são leituras, na vertigem de uma reflexividade imparável (é a questão da relação cultura-a-cultura de que Valente Alves nos fala) inaugurada por Montaigne, mas por outro nos deixamos tocar pelo pressentimento de um sentido aparentemente primeiro, mas em inexorável ruptura com o passado, que apenas pode assumir-se numa dada inflexão cromática da alegoria em que nos encontramos encerrados. Estamos aqui no ponto em que o Três, instabilizando todas as dicotomias (incluindo as da pintura/fotografia, alta cultura/cultura de massas, subjectividade/objectividade, passado/presente, natureza/técnica), permite que ultrapassemos também a vacilação entre política e metafísica e sejamos capazes de suspender o sentido óbvio (como o próprio Giorgione conseguiu) sem deixarmos de o encostar de muito perto à densidade das matérias e das formas - até sentirmos que um coração bate no outro lado da imagem.

Situamo-nos assim no intervalo em que o político hesita entre sublimar-se num percurso esteticizante (que seria, como em Sebastião Salgado, o que vai do facto à beleza de uma imagem, que desse modo viria intensificar a sua emoção prévia) ou simplificar-se num trajecto conceptual (indo, neste caso, da ideia à sua visualização fria). Em Manuel Valente Alves, sobretudo desde o momento que passou a servir-se de múltiplos materiais e linguagens mobilizados em função dum projecto de dominância fotográfica, encontramos uma extraordinária capacidade para pensar o que se deixa pensar na subtil deslocação de referências e espelhos e permitir que o sentido se imobilize e espante no limiar das suas perplexidades fundamemais: que são inevitavelmente derivadas de um opressivo sentimento de que o tempo urge e de que nessa urgência o tempo (ou a praia imensa de um sentido terceiro pacificado e informulável) nos falta desde sempre, e para sempre, esquivo, enevoado, cantante, absorto e obstinado.

[PRADO COELHO, Eduardo, “Alegorias do Medo”, catálogo da exposição Donde vimos? O que somos? Para onde vamos?, Casa da Cerca, Almada, Junho de 1999]