[Manuel Valente Alves, “Ilha Branca”, 2007]


ILHA BRANCA por Emília Ferreira


Há muito que Camões deixou para trás a Ilha dos Amores. No fim da vida, de regresso ao reino, oferece

ao rei e ao seu povo o maior livro que escreveu. Não sabe que esse virá a ser o nosso maior mito,

fundador da identidade, voz essencial. No fim da vida, o poeta sabe apenas que aquela é a sua maior

obra. No fim da vida, sabe apenas que a próxima ilha que verá será a derradeira, aquela onde apenas o

silêncio reina. Camões teme que a sua voz se perca, que a sua dádiva se esfume. Por isso se pergunta o

que fazer com esse livro. Por isso nos pergunta o que faremos com esse livro.

Camões não poderia saber que logo após a sua morte o reino que tanto elogiara cairia também. Sabê-lo-

ia mais tarde Saramago, que entre outras coisas saberia também outras histórias da história do mesmo

povo e conheceria por dentro a amargura de uma voz que nem sempre se pôde fazer ouvir. Com séculos

de permeio, duas vozes ergueram-se apesar das hesitações e das contrariedades. E, sem esperar a

morte, há muito que Saramago deixou o reino por uma ilha. A sua ilha outra dos amores.

Apesar dos pesares, tanto Camões como Saramago, pessoas e não personagens, mantiveram a sua voz.

Para lá das ilhas e dos reveses, para lá dos múltiplos descasos, ambos lograram fazer-se ouvir. As suas

vozes não se perderam, as suas identidades permanecem.

Da Ilha Branca, onde jaz Helena, nenhuma voz se ergue. Dessa mulher sabemos apenas o que outras

vozes dela disseram. A sua beleza causou a sua perdição e a perdição de um homem, de uma dinastia,

de uma cidade. Navios sulcaram o mar para vingar a honra manchada de Menelau, o marido traído, o rei

ultrajado. E fez-se uma guerra. Sobre os escombros de Tróia, sobre os escombros de Helena, pairam

ainda os fantasmas de tantos gregos e troianos, homens com estirpe de heróis, dotados de astúcia e

sabedores da arte da guerra, do peso do dever, do sabor da morte.

Helena regressa a casa, finda a guerra, troféu retomado, colocado no devido lugar. Para trás fica a ruína

de Tróia, o obrigatório fracasso de um amor, tanto mais condenado ao insucesso quanto foi urdido pela

malfeitoria dos deuses. Para trás, num mar que Homero chamou cor de vinho mas que era cor de sangue,

ficou a possibilidade da sua voz. Ao regressar a casa de Menelau, o marido enganado, o marido vingado,

o marido magnânimo, ela assume o rosto que os outros lhe permitem ter. E chama a si mesma o que os

outros apenas vêem: a mulher adúltera. A cadela. Aquela que nada é, que nada merece. Nada mais

sabemos de Helena, e por isso nem na morte a ouvimos melhor. Que faria com a sua voz? Que fareis

com a sua voz? Sobre as estacas dessa súplica, a ter sido ouvida a sua versão dos acontecimentos,

talvez cidades mais benévolas se tivessem erguido. Que fazer nesses momentos em que alguns decidem

pela voz dos outros? Que fazer para não morrer? Que fazer para ouvir quem não pode calar? Em que ilha

nos encontramos?