[Manuel Valente Alves, “Vitória de Samotrácia”, 1996]


CONTRA A TRANSPARÊNCIA por Carlos Vidal

A presente instalação fotográfica de Manuel Valente Alves patente no Centro de Artes Plásticas, em Coimbra, proporciona três tópicos de análise – a destacar no contexto do trabalho recente do autor – que vão constituir o núcleo mais estimulante da proposta de abordagem que avançamos neste texto em que estão em questão as relações do autor com a herança da modernidade estética ocidental.

Em primeiro lugar, no trabalho de Manuel Valente Alves revela-se uma nova estratégia de presentificação (das deficiências) da imagem fotográfica e respectiva crítica da sua permanentemente falsa transparência (e a crítica da fotografia, ou da imagem mediática, como retrato da realidade e emanação de uma verdade indiscutível).

Concretamente, ele pretende contrariar essa ilusória transparência não propriamente, como noutros momentos, recorrendo ao texto (que, como sabemos, pode servir para completar ou desviar significações, corrigindo o imediatismo da fotografia), mas desta feita através de outras imagens.

Em segundo lugar, a relação conflitual aqui mantida imagem versus imagem (e tratam-se, de facto, de dois núcleos de imagens de natureza e sentidos opostos), para além da sua localização no campo da recepção estética, sinaliza uma tomada de posição do autor para com a situação catastrófica (civilizacional, mas não apenas) do continente africano. Esta tomada de posição política é a unidade significacional autónoma para que remete a exposição e, neste sentido, é ela o único «texto» exposto.

Numa definição alargada de termos que se traduz deste modo: o «texto» da exposição é a unidade significacional obtida de um confronto entre imagens e não uma mera inclusão ou sobreposição de frases e palavras sobre as imagens. Estas imagens bastam-se a si mesmas – cumprem simultaneamente a função de providenciar um efeito estético e uma mensagem política inteligível.

Por último, a escolha das imagens e principalmente o título da exposição -«Vitória de Samotrácia e a Poética da Ruína no Século XX» - fazem emergir um ponto de vista necessário e uma autocrítica. Dizem-nos que a determinação da catástrofe africana não resulta somente de factores políticos e económicos, mas também de uma componente cultural associada a tais factores – e isto é um dado importante, porque só a destrutiva convicção do homem branco em torno da sua superioridade cultural pode servir de legitimação histórica à barbárie colonialista e, actualmente, neocolonialista.

Máscaras multiculturais

O pormenor é tanto mais oportuno quanto actualmente, no art world pelo menos desde 1989, nomeadamente desde a mega-exposição parisiense «Magiciens de la Terre», pululam em debate temáticas como o multiculturalismo e o direito à diferença, algo que é visto por muitos críticos avisados como uma forma de preenchimento de novos espaços, ou uma injunção de «sangue» e factos novos num mercado de arte (ocidental) sequioso de uma saída para o seu mais do que evidente esgotamento.

Assim, Manuel Valente Alves alicerça um momento autocrítico, numa linguagem que não renega a herança da modernidade estética ocidental, aproximando-se mesmo do inexpressionismo pertencente às mais recentes neovanguardas. Com tal procedimento, indica-nos que a cultura não se pode julgar um campo inocente no seio da barbárie civilizacional despoletada pelo colonialismo ocidental. Esta não se isenta das suas responsabilidades nem mesmo na recorrência actual ao imperativo multicultural, o qual mais não sinaliza que a confirmação das fortemente críticas observações de um filósofo Alain Badiou, que escreveu num dos seus últimos livros sobre o muito apregoado direito à diferença – peremptoriamente, tal não é mais do que um «sê como eu e, então, respeitarei a tua diferença». Ou, de outro modo, a visão etno e eurocêntrica do Outro, independentemente das suas máscaras, não é mais do que uma visão do «Eu-Mesmo à Distância» (Badiou, «L’éthique, Essai sur la Conscience du Mal», 1993).

Não serão estes termos de Badiou um magnífico retrato de uma visita ao Centre Georges Pompidou onde junto à vanguarda ocidental dos anos de 60 a 80 nos cruzamos com aborígenes pintando?

Deste modo, o sentido desta instalação de Valente Alves não pode ser obtido só na identificação dos lugares aqui fotografados (interiores de casas e espaços urbanos americanos) – essa é uma leitura preguiçosa da exposição e da sua postura relacional. Diria mesmo que é preciso procurar um sentido inverso ao de tal identificação, na medida em que a transparência fotográfica se tornou um dos maiores equívocos estéticos da actualidade.

Tem sido precisamente contra essa pseudotransparência das imagens provenientes da reprodutibilidade técnica (fotografia, vídeo, televisão, etc.) que Valente Alves tem trabalhado desde a sua série «Hotéis», mostrada pela primeira vez em 1993 no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian.

De vários modos, pode dizer-se entretanto: por um lado, muitas das suas fotografias referem-se a géneros codificados da história da arte e do «modus operandi» da pintura em particular para um sua subsequente desconstrução (afectando o entendimento da «paisagem» ou dos processos técnico-matemáticos da perspectiva).

Modelos de vida

Em «Hotéis», por exemplo, a uma paisagem deserta se sobrepõe, numa faixa branca colocada em baixo, a série de designações (uma por cada peça) «Hotel Victoria», «Hotel Ambassador», «Hotel Royal», etc. Que significa isto?

Em primeiro lugar, uma ultrapassagem da crítica linguística radical de Magritte que não aceitava que um nome remetesse automaticamente para uma e só uma «coisa». Neste tipo de caligramas de Valente Alves nem há dupla grafia (palavra e imagem querendo significar a mesma coisa), nem há uma irreconciliação dos dois parâmetros.

Em «Hotéis», imagem e palavra rectificam-se mutuamente, num curto-circuito de amplas possibilidades significativas. A este propósito, num texto anterior sobre o artista, citei Michel Foucaut: este curto-circuito significacional permite «apagar ludicamente as mais velhas oposições da nossa civilização alfabética; mostrar e nomear; figurar e dizer; reproduzir e articular; imitar e significar; olhar e ler» («Ceci n’Est pas Une Pipe», Fata Morgana, Paris, 1973).

Em todos os momentos da sua trajectória fotográfica, Valente Alves parece trabalhar assim: a imagem corrige e infunde significação ao texto e este, por sua vez, devolve divergentes possibilidades significacionais e simbolizadoras à imagem. O momento mais radical desta estratégia de comunicação autocrítica registou-se na anterior exposição do autor, onde uma simples titulação bastava para desfigurar por completo outras fotografias de paisagens, «normais» paisagens alentejanas. Intituladas de «1932-33: Genocídio pela Fome na Ucrânia» ou «1915-1916, Império Otomano: Genocídio Arménio Organizado pelos Jovens Turcos».

Por esta estratégia se renega o consumo de uma natureza neutra e idealizada – porque tais fotografias, tal como de novo nesta exposição de Coimbra, contém uma crítica apontada aos próprios sistemas culturais que neutralizaram e idealizaram a visão transparente da natureza (ou das praças públicas onde se cometeram os maiores crimes em nome do Estado: ou não será assim com Tian’anmen, por exemplo, hoje e sempre um «magnífico» e «limpo» espaço urbano?).

Nesta exposição há cinco fotografias banais de cenas urbanas americanas (e o título de cada uma – com excepção da que origina o título global da instalação – remete sempre para África, como por exemplo: «África – Território Britânico em 1914»), ladeadas por quatro mapas que registam as possessões coloniais europeias em 1914.

O sentido deste conjunto produz-se exactamente entre a identificação de uma cena urbana – europeia, americana – e a sua relação com a leitura do mapa que desarma a aparente normalidade (e transparência) das imagens convocadas. Não estamos somente perante uma denúncia do colonialismo e do neocolonialismo, mas de toda uma civilização que vive das suas imagens e as exporta como modelos de vida.

[VIDAL, Carlos, “Contra a transparência”, Jornal A Capital, Lisboa, 2 de Maio de 1996]