[Manuel Valente Alves, “Hotéis”, 1991]

IMAGINAÇÃO DA PAISAGEM por Carlos Vidal

Valente Alves mostra-nos, nesta exposição, seis fotografias de paisagens transformadas em objectos, para o que contribui a colocação do vidro sobre a fotografia («afastando-a» do observador), a moldura é uma peculiar forma de legendagem: as inscrições «Hotel Royal», «Hotel Ambassador», etc. (entre seis «Hotéis») numa barra branca que «rouba» à paisagem fotografada o seu primeiro plano (afastando-a, ainda mais, do observador – suspendendo-a).

Duas facetas parecem desprender-se destas paisagens/objecto. Uma primeira, talvez a mais racional remete para a paisagem como género integrante da história da arte, submetida ao olhar do artista de hoje, que surge como alguém «contaminado» pela vida urbana e pela cidade moderna – o que pode ser sinalizado pela palavra Hotel justaposta (ou sobreposta) aos elementos naturais. O autor começa por se interrogar, no interior da própria história da arte, acerca da validade de uma (nova) relação entre a paisagem/natureza e as novas máquinas de figuração do mundo (já não a pintura mas sim a câmara fotográfica) pondo em causa a representação tradicional.

Esta faceta é ainda genérica, mas não deixa de ser especificamente contemporânea: fala-nos da relação entre o homem moderno – o que habita a cidade – e a natureza, fala-nos também da «conquista» da natureza pelo homem, o que surge aqui metaforizado pelo olhar fotográfico sobre a paisagem desumanizada. Olhar moderno que transforma estas paisagens em imagens do presente e não pertença do passado (isto é, não tanto um «isto foi», como, da fotografia, falava Roland Barthes), sendo esta imposição do presente da consequência da passagem destas fotografias a uma nova condição de objectos. Este olhar pode ainda ser melancólico, mas não forçosamente nostálgico. A sensibilidade (ou a sensibilização) melancólica surge na medida em que, de fotografia para fotografia, vemos repetirem-se vários elementos: a imensidão do natural sem presença humana, a insistência nas gradações sépias (tratam-se de fotografias a preto e branco reveladas a cores), uma mesma ondulação das colinas, a moldura, o vidro e a legenda com o nome de um hotel, nomes que remetem para o início do século – auge do tempo moderno (do futurismo, do cubismo, do construtivismo, etc).

Poética

Do conjunto destas seis fotografias legendadas, parece resultar um mapa do imaginário, um mapa – com a indispensável indicação do nome dos lugares – da imaginação da paisagem. Ora um mapa de um universo imaginário é sempre algo melancólico, na medida em que sinaliza sempre várias possibilidades de percorrermos e de nos perdermos numa espécie de labirinto – assim surgem estas fotografias/objecto como um mapa de paisagens enigmaticamente denominadas «Hotéis», paisagens cuja configuração real se altera pela repetição desta situação estranha que as liga à palavra. Contudo, estas paisagens são ainda imagens subjectivas, permanecendo sempre enredadas numa peculiar dimensão poética, apesar da condição de objecto que se lhes queira conferir.

Esta dimensão poética vai constituir, então, uma segunda faceta destas paisagens/objecto, resultante sobretudo da forma de inscrição da palavra sobre a paisagem, esta – neste novo contexto – transformada em lugar idílico (arcadiano) que o fotógrafo regista talvez para testemunhar o prazer intenso e único (irrepetível) da sua contemplação, remetendo, desta feita, para a pintura de paisagem, mais que para a génese moderna da fotografia. Concilia a paisagem com a palavra de uma forma que, por vezes, poderá evocar (citar?) os mesmos moldes relacionais observados no célebre quadro de Poussin, datado de 1655 (Museu do Louvre), denominado «Et in Arcádia Ego» («Existo na Arcadia», região celebrada pelos poetas na mitologia grega), no qual esta frase em latim sinaliza um túmulo (o que fez Erwin Panofsky atribuir-lhe outra tradução: «A Morte Existe na Arcadia») para onde dois pastores apontam. «Existo (ou vi) na Arcadia» significa a visão de algo que nunca mais se tornou a ver e se situa no passado.

Este seria, assim, o contributo para uma leitura nostálgica destas fotografias, algo que o autor nega. Esta leitura nostálgica é uma presença que pode a qualquer momento ser referenciada, por isso Valente Alves se ocupa em provocar um conflito entre essa filiação no passado (reforçada pelas tonalidades sépias, as quais podem não evocar somente o passado mas também uma temporalidade inexistente) e a modernidade da referência ao hotel e sua urbanidade cosmopolita. Digamos que os méritos e os perigos destas fotografias se encontram, respectivamente, na sua não concessão a uma leitura e narrativa lineares e, por outro lado, na tendência para a proposição de enigmas insolúveis.

História

O denominador comum das duas facetas atrás descritas passa por um gosto em experimentar a história da arte e pela tentação em operar a partir de alguns dos seus géneros estabelecidos - nesta exposição é a paisagem – ou seus «preceitos»: veja-se a exposição «Arte da Pintura», realizada por Valente Alves por ocasião dos X Encontros de Fotografia de Coimbra (1989). Também nesta exposição de 1989 o autor utilizava o texto (excertos, tratados de forma cuidadosamente gráfica, de «Arte da Poética, e da Pintura, e Symmetria, com Princípios de Perspectiva» de Philipe Nunes, 1615) em contraposição à imagem: víamos o texto – sua mancha gráfica – junto a planos muito aproximados de mãos, formas abstractas e diagramas de geometria clássica. Em «Arte da Pintura» tratava-se de trabalhar com uma ideia básica que era a da construção da imagem a partir dos seus elementos estruturantes, quer nos enunciados pelo texto citado quer os necessários à própria imagem actual (tendo em consideração que as imagens, hoje, não são construídas formalmente, pois já fazem parte do nosso quotidiano).

Nessa exposição, bem como na actual, as intenções do autor – proceder a uma genealogia do retrato e da paisagem, géneros primeiros, quer da história da fotografia quer das artes pictóricas – ficam bem clarificadas, isto se as compararmos com trabalhos anteriores a 1989, período em que Valente Alves se dedicou à pintura (expondo desde 1985), prática hoje salutarmente abandonada em favor de uma pesquisa mais directa (a fotografia), mais eficaz e menos convencional.

As limitações da pintura, em Valente Alves, eram visíveis no zelo demonstrativo e ilustrativo de determinadas concepções de espaço, que o autor levava ao esgotamento pela utilização de estratégias evidentes: por exemplo, na Galeria Diferença, em 1986, as pinturas eram expostas em sala fechada, procurando-se, assim, fazer da sala um elemento integrante da pintura, revelando uma espacialidade física que é agora contrariada por esta outra espacialidade não naturalista destas paisagens, que conseguem mostrar, na sua bidimensionalidade «agarrada» à parede, muito mais que aquilo que era mostrado no aparato cenográfico de instalações pictóricas anteriores.

[VIDAL, Carlos, “Imaginação da paisagem”, Jornal A Capital, Lisboa, 27 de Fevereiro de 1992]