[Manuel Valente Alves, “Et in Arcadia Ego”, 1995]

A MORTE QUOTIDIANA por Carlos Vidal

«Et in Arcadia Ego» é o título da última exposição/instalação de Manuel Valente Alves, na Galeria Graça Fonseca (Lisboa). O trabalho apresentado é um dos seus tópicos centrais (o livro que direcciona estruturalmente a proposta), são deste modo descritos pelo autor: «Esta exposição compõe-se de dois grupos de fotografias: o primeiro é constituído por cinco paisagens desertificadas, mas conservando ainda vestígios da presença humana; o segundo, por 24 árvores isoladas na paisagem. Cada uma das cinco paisagens desertificadas tem por título um dos cinco genocídios perpetrados neste século (genocídio arménio, Império Otomano, 1915-16; genocídio pela fome na Ucrânia, 1932-33; genocídio judeu e cigano, 1941-44; genocídio Khmer, 1975-79; Ruanda, 1994); a cada árvore corresponde um dos 24 massacres genocidários praticados também neste século. Os títulos baseiam-se numa listagem retirada do livro «L’État Criminel» (Seuil, 1995), de Yves Ternon, médico francês, que conduz, desde 1965, pesquisas históricas em torno do genocídio judeu e do genocídio arménio», (do catálogo-desdobrável).

Os dados estão desde logo lançados neste texto programático, que conduz a forma e a ordem dos trabalhos. Entretanto, o que de seguida me interessa destacar é a conjugação de factores que vai proporcionar a Valente Alves, com estas peças junto a um discurso de conteúdo explicitamente denunciatório e político, uma ruptura, aparentemente total, em face da orgânica do seu percurso fotográfico anterior, mantendo contudo, inteligente e paradoxalmente, intacta toda a tecitura significante todo o aparato de produção de significação já conhecido. Daí a pressentida necessidade de recuar a uma das suas séries emblemáticas: «Hotéis», de 1991.

Tal série é constituída de seis fotografias de paisagens, também elas desérticas e desumanizadas. Desumanizadas sem sombra de catástrofe, deve acrescentar-se, mas, diria, inumanamente poéticas. Uma velatura sépia tende a expulsar as imagens resultantes para o plano de uma irrealidade simultaneamente excluída da representação e do próprio real fotografado. Debaixo da linha de paisagem, o autor inscreve uma legenda: para cada paisagem, seis legendas: «HOTEL AMBASSADOR», «HOTEL ROYAL», etc.

No seio deste processo repetitivo há como que uma dissipação significacional profunda, uma instabilização da fixidez relacional entre significados e significantes, entre conteúdo e forma: Valente Alves afasta-se da performatividade mercantil de uma comunicação da necessidade ou uma necessidade de comunicação, síndromas do espartilho onde se inscreve a vida das nossas sociedades, onde a pura alienação se manifesta numa total expropriação da linguagem que nos é comum; ao mesmo tempo, nestas mesmas peças, também se adopta uma estratégia diferente da crítica linguística preconizada por um artista como Magritte, embora nela pareçam basear-se.

Conciliação palavra/imagem

Peguemos, entre muitas outras possibilidades, no verso de Gertrude Stein, «a rose is a rose is a rose…», para algumas analogias. Aparentemente, a terceira vez que repetidamente lemos a nomeação «rosa» em relação ao objecto (não importa o quê), já não tem a força da primeira, a qual, por seu lado, depois da necessidade ou da insistência das nomeações enunciadas subconsequentemente - «a rose is a rose is a rose…» - faz-nos duvidar de qual a veracidade da realidade do próprio objecto: é ou não é uma «rosa»? Mas a negação pura e simples está ausente. Não está escrito «this is not a rose», obviamente.

Esta estruturação da linguagem subtrai-se à mera obrigatoriedade conflitual, ou de exclusão mútua, que coloca a legibilidade do sentido ora na negação, ora na afirmação. E subtrai-se a isso para aceder a uma renovada dupla grafia que se responsabiliza por uma mínima presença relacional entre palavra e imagem. Se não estivéssemos perante tal repetição serial e processual, se víssemos apenas uma fotografia de uma destas paisagens ostentar a inscrição «HOTEL…», o programa era muito provavelmente de natureza magritteana. Falava-nos, com efeito, da irreconciliação entre os dois termos – o imagético e o linguístico. No conhecido pintor surrealista ora se nomeia aleatoriamente, ora se nega a nomeação «a priori» do que quer que seja (para se poder, sempre, afirmar outra coisa); lembremo-nos do «isto não é um cachimbo» por debaixo do desenho de um cachimbo.

Valente Alves socorre-se de um outro mecanismo. Enquanto na tautologia a palavra se junta à imagem para designar o mesmo, Michel Foucault fala (em «Ceci n’est JOR une pipe»; Paris, 1993) nessa outra hipótese advinda do caligrama, em que não há irreconciliação total entre estes dois parâmetros comunicacionais, antes se deixando pairar (quer no verso de Stein, quer nos «Hotéis» de Valente Alves) uma conciliação parcial entre os materiais empregues para produzir sentido. O que permite, ainda segundo o filósofo francês, «apagar ludicamente as mais velhas oposições da nossa civilização alfabética: mostrar e nomear; figurar e dizer; reproduzir e articular; imitar e significar; olhar e ler».

Depois de «Hotéis», fixemo-nos na série “Princípios de Perspectiva Linear», exposta em Março de 1994, em Lisboa. Como geometrização radical dos meios representacionais da realidade, a perspectiva linear é sempre uma JOR-subjectivação. É um ser, pegando nos termos de Agamben, de uma singularidade qualquer e sem pertença: é uma codificação impersonalizada e científica que se opõe a um outro pólo: o da perspectiva naturalis. A superfície de cada peça desta série encontra-se dividida em duas zonas: um diagrama de perspectiva linear e uma fotografia de um mar. A imagem de dois não-lugares, por excelência. É efectivamente dos não lugares da vida contemporânea que fala e metaforiza “Princípios de Perspectiva Linear».

O não-lugar é uma espécie de reino da imagem pura, abstracta, espectacular e irredutível à singularidade. É o passe-partout de toda uma sociedade que vive da e para a homologação global: é antevisto desde as grandes salas de congressos aos aeroportos, etc. Por sua vez, quando Valente Alves retoma nesta exposição o mito arcadiano que Virgílio imortalizou como um dos lugares do paraíso (nas «Éclogas»), é ainda deste mesmo assunto, da sua denúncia e desocultação, que se trata. Valente Alves sabe que hoje, tal como fez Virgílio no passado sem qualquer sofisticação (tecnológica, entenda-se), esta transformação de um lugar seco e pobre em modelo de felicidade tem a assinatura de uma sociedade devastadora, fundada na máquina de destruição e da mentira mediática do capitalismo informático, que promete igualmente o seu paraíso: o da satisfação das necessidades; e a efectiva comunicação acelerada.

Genocídio espectacular

Que mundo é este que transforma a máxima miséria e a catástrofe (genocídio) em espectáculo com inúmeros destinatários e beneficiários, em «decor» estetizado? Baudrillard, por exemplo, assim o define, mais as gerações que o habitam: «Essas gerações que já nada esperam de um devir futuro e que cada vez menos confiam na história, que se submergem entrincheiradas detrás das suas tecnologias prospectivas, detrás das suas provisões de informação acumulada e nas redes alveolares da comunicação, de onde o tempo está enfim aniquilado pela circulação pura… essas gerações talvez não despertem jamais, mas disso não têm a mais remota ideia. O ano 2000 talvez não chegue a dar-se, mas disso não podem ter nem a mais remota ideia» («L’illusion de la fin ou la greve JOR évènements», 1992).

Diagnóstico mais fatal do que sombrio. Tal como é fatal a repetição sucessiva, cíclica ou não, dos genocídios que constituem a matéria da nossa história e desta instalação de Valente Alves. E um dos méritos maiores desta abordagem encontra-se na enfatização do papel do Estado como a mais poderosa das entidades genocidárias (dizia o revolucionário Saint-Just que todas as artes produziram maravilhas, mas a arte de governar quase só produziu monstros.)

Valente Alves usa aqui fragmentos de paisagens alentejanas, áridas e quase despojadas de presença humana. Fora de campo, discretamente na parede como se de uma titulação vulgar de obras se tratasse, o autor coloca os seus títulos segundo o método e o propósito atrás descritos. Fora de campo e interior entrecruzam-se significacionalmente; as legendas são objectivas: «1965-1990 Guatemala: massacre dos camponeses índios»; «1965-68 Brasil: aniquilamento das tribos Índias do Mato Grosso», etc. O que distingue então estes trabalhos da série «Hotéis», tendo em conta as suas discrepâncias ou semelhanças ao nível do significante e do significado, e a utilização da legenda e da imagem?

Propõe-se agora um extremar de todos os processos anteriores. Deixou de haver qualquer tipo de parcialidade, de reconciliação dissipativa. Porque a legenda ou tem tudo ou não tem nada a ligá-la à imagem. Porque nenhum dos genocídios enunciados se deu, de facto, naquelas paisagens fotografadas, que respiram a sua respectiva calma exactamente desoladora e arcadiana. Mas, por outro lado, disso nunca poderemos estar certos, pois não existe nenhum «Estado criminal» que não consiga transformar numa JORNAL, mediática ou noutra, os sinais mais evidentes do aniquilamento (qual é a imagem, hoje, de Tiananmen?).

Daí termos também de considerar que a relação entre a imagem e a legenda é total, mesmo tautológica. Surge-nos a própria realidade, mas filtrada pelos «olhos» de Poussin, o pintor que no século XVII nos deu duas versões de pastores da Arcádia junto de túmulos onde se encontra inscrita a frase «Et in Arcádia Ego». Panofsky, num seu conhecido estudo, contesta a tradução desta frase para um imediato «Eu existo na Arcádia». No seu ensaio «Et in Arcádia Ego: Poussin e a Tradição Elegíaca» (1936), escreve: “Tentarei mostrar que a interpretação real - «a morte existe mesmo na Arcádia” – é gramaticalmente correcta (…) e que a nossa moderna maneira de ler essa mensagem – “Eu também nasci, ou vivi, na Arcádia” – é, na realidade, um erro de tradução. Depois tentarei mostrar que esse erro de tradução, embora indefensável do ponto de vista filológico, não surgiu apenas por “pura ignorância”, mas, pelo contrário, expressava e sancionava, às custas da gramática, e sempre no interesse da verdade, uma mudança básica da interpretação. Por fim tentarei atribuir a responsabilidade pela reformulação deste erro (…) a um grande pintor». É então a partir das obras de Poussin que Panosfky vai sustentar as suas leituras e interpretações.

Com a agravante, se considerarmos os temas e as imagens de Valente Alves, de o nosso estádio civilizacional não ser propriamente uma paisagem arcadiana, nem na sua versão grega (a pobre montagem do Peloponeso onde Artémis caçava), em na versão de Virgílio (o paraíso). Daí Valente Alves propõe um desvio: em vez de nos falar numa morte poética, sem tempo e abstracta, fala-nos de uma morte quotidiana, passando da história da arte para a realidade socializada.

Refere o autor em texto inédito: «A relação entre Poussin e a notícia da descoberta de resíduos nucleares numa quinta inglesa, surgiu-me na exposição («Nicolas Poussin», Royal Academy, Londres, Fevereiro), frente a dois famosos quadros do pintor (…). A intrigante frase «Et in JORNAL Ego», inscrita nas duas pinturas de Poussin, fez-me lembrar os dois títulos que, naquela manhã, ao folhear jornais e revistas do dia, me chamaram a atenção». Numa das notícias, na «Time-Out», lia-se o seguinte: «Estão a surgir depósitos de lixo ilegais, estimulados pelo encerramento de aterros sanitários e por um mini-boom na construção civil. A recente descoberta de resíduos nucleares numa quinta de Northamptonshire poderá ser precisamente a ponta do iceberg.» E aqui a temática da exposição volta a promover-se num outro deslize temático: do genocídio para o suicídio colectivo. Para onde apontam as formas presentes de relação e de governação.

[VIDAL, Carlos, “A morte quotidiana”, Jornal A Capital, 18 Maio de 1995]