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[Manuel Valente Alves, “Hotéis”, 1991]

DA HOTELARIA COMO UMA DAS BELAS ARTES por Bernardo Pinto de Almeida

Dedicado ao João Miguel Fernandes Jorge

Tomem-se os «Hotéis» de Manuel Valente Alves como um trabalho de síntese na obra longa do artista a partir dos seguintes tópicos:

1) O fazer confluir no registo da fotografia uma memória que vem da pintura através da metáfora da paisagem.

2) Continuar, nesse domínio, uma experimentação que é consequente com anteriores trabalhos em que pintura e fotografia foram utilizadas como meios destinados a exprimir um vocabulário autónomo não separado em géneros.

3) O cruzar-se da imagem com a palavra (a legenda) numa tradição que se poderia ainda (e ainda no campo da pintura) referir a Magritte.

4) O jogo conceptual que é decorrente do tópico anterior e que consiste em referir a um nome de conotação urbana e, mais do que urbana, cosmopolita, uma imagem que é indesmentivelmente campestre ou rural.

5) O haver-se, nesse jogo, a aliança de uma ironia de cariz romântico – reforçada pelo próprio uso da fotografia a sépia e da referência à paisagem desertificada e bruta na sua consistência telúrica – ao gosto da proposta minimalizante, o que por sua vez reforça ainda o carácter por assim dizer conceptual da proposta (projecto).

Tomando estes tópicos como alguns dos que imediatamente são suscitados pela contemplação destas imagens, haveria que referir ainda a presença constante da melancolia como um modo de «sentir o olhar», na expressão de J. M. Fernandes Jorge. Nostalgia (romântica) de um mundo que perdeu o seu valor ideológico no contexto contemporâneo duplamente afirmada na paradoxal valorização, de hotéis de gosto e referência novecento, quando as cidades eram cidades e não aglomerados urbanos e tinham, também elas, um valor ideológico que W. Benjamin melhor que ninguém referiu no célebre texto sobre Paris enquanto capital do século XIX.

Ora a nostalgia é sempre referência a algo que se perdeu: neste caso, aquilo que se lamenta a perda – tanto quanto o lamentar seja a expressão por excelência da nostalgia – é o lento desaparecer das referências sólidas do imaginário moderno. Por essa razão a presente série de Manuel Valente Alves introduz a dimensão da temporalidade entendida quer no seu sentido histórico quer no seu sentido metafórico. O título da série, «Hotéis», ao referir um espaço conotativamente, aplica-se no plano denotativo ao tempo.

É pela nostalgia que o olhar ganha uma certa «consciência do tempo» passado e da sua densidade poética e imaterial (porque irrealizável enquanto matéria) mas todavia representável na única dimensão que a sua condição de irrepresentável autoriza: a dimensão poética.

Será pois no plano de uma poética que se torna legítimo entender esta série de fotografias e o projecto que lhe subjaz.

Poética que começa por se firmar no denominador da melancolia para depois (no sentido em que Rilke pôde dizer que a saudade é não ter pátria no tempo) se continuar na referência à palavra e ao uso da palavra enquanto matéria de desconstrução (do discurso) do sentido e de associar à imagem verbal (referencial neste caso pelo próprio peso da memória que os nomes dos míticos hotéis suscitam) a imagem propriamente visual que volta a descobrir a primeira, enquanto imagem referencial, na medida em que a palavra é já imagem.

E nisso se revê uma linha de reflexão conceptual que no Magritte do «ceci n’est pas une pipe» se inaugurou deveras em matéria de matéria de pintura e que aqui regressa por um inteligente desvio que conota com outras memórias da arte deste século, implicitando a revisão de certas propostas de Richard Long ou Hamish Fulton.

Neste sentido a proposta do artista adquire uma extrema qualidade de ser contemporânea face ao que se joga no terreno da arte actual: como representar a memória e o tempo, o espaço e a matéria ou, dito de outro modo, como representar o irrepresentável.


[PINTO DE ALMEIDA, Bernardo, “Da Hotelaria como uma das belas artes”, Revista Colóquio Artes, Lisboa, nº 99, Dezembro de 1993]