[Manuel Valente Alves, “Arte da Memória, 1998]

MEMÓRIA DA ARTE por Bernardo Pinto de Almeida

O trabalho de Manuel Valente Alves, prosseguido ao longo de já quase duas décadas e fiel apenas ao seu íntimo projecto experimentalista, desenvolveu desde o início uma matriz que imediatamente o singularizou e que poderíamos sintetizar como vectorizada por uma constante e sistemática problematização da imagem e do seu estatuto.

Se assim foi desde o início, logo nele se problematizaram os limites da imagem da pintura, projectando-se depois numa interrogação daquilo que, noutro lugar, chamei a imagem da fotografia, radicalizando-se nos últimos anos - nomeadamente através de experiências em vídeo - para se constituir, nas obras mais recentes, como questionação mais profunda da própria imagem da arte.

Assim se tendo construído, não surpreende que uma parte desse trabalho de investigação artística se tenha em certo momento abeirado de algumas temáticas afins da arte sociológica ou política, como ocorreu por exemplo com a série que em 1996 apresentou no CAPC, em Coimbra, genericamente intitulada "Vitória de Samotrácia".

Essa aproximação não se deveu no entanto a nenhuma intencionalidade derivada de modas circunstanciais mas antes, muito concretamente, decorreu da lógica inerente ao seu próprio medium, na acepção crítica que Clement Greenberg deu ao termo.

O que pretendo afirmar é que algo inerente aos meios com que trabalhava e ao modo como os trabalhava - através da referida vontade de questionação das imagens quer da pintura, quer da fotografia, quer da própria arte - o conduziu inevitavelmente ao encontro dessa margem em que claramente se inscreve a linguagem de uma arte política.

Ou seja, ao terreno de uma prática artística que, mantendo embora uma especificidade de intervenção que a situa no interior dos dispositivos que a caracterizam e legitimam enquanto tal, interroga o campo de manifestação do social e a própria emergência das linguagens por ele suscitadas.

Do mesmo modo se compreenderá que à medida que esse trabalho progride cada vez mais ele vá ao encontro da problemática pós-moderna de uma virtualização generalizada.

Interessa todavia perceber bem porque é que as coisas se passaram deste modo. O que hoje já podemos constatar é que o desenvolvimento deste processo de virtualização - na técnica, na ciência como nas artes - conduziu a uma nova situação, perceptiva e conceptual, de carácter pós-crítico, que se caracteriza pela marca de uma saturação sígnica e imagética. E essa saturação - de que nos apercebemos através da difusão mediática das imagens a uma escala planetária - acabou por transformar as nossas tradicionais representações da realidade (percebida enquanto espessura) em sensações difusas e planificadas de uma hiper-realidade. Dir-se-ia que a realidade sofreu um processo de rarefacção à medida que se foi manifestando, com intensidade crescente, este take over da imagem relativamente ao real.

Que significa isto?

Por um lado, que a saturação decorrente de um excesso de informação nos conduziu a uma espécie de êxtase perceptivo em que os mecanismos da crítica se atenuam para dar lugar a uma percepção da realidade numa dimensão tão excessiva e eufórica que todo o juízo ou decisão tendem a ficar bloqueados.

Por outro lado que a identificação crítica das situações a partir de uma distância operatória - própria do trabalho artístico - acaba perdendo a sua eficácia no plano das representações. Ora porque não consegue transgredir as fronteiras do próprio campo artístico, ora porque se confunde com outros campos de intervenção visual. Hoje em dia, para dar um exemplo breve, é difícil distinguir certas manifestações artísticas de outras originárias do design ou de carácter publicitário, como no caso de Sherrie Levine e outros, sendo essa distinção perceptível apenas através de uma competência específica. Pelo que cada vez mais se transformam as relações a que nos habituáramos entre representações da realidade e representações da arte - códigos que eram ainda facilmente identificáveis no modernismo complexificando-se assim a medida que relaciona a arte com a vida e a própria delimitação de um espaço semântico de identificação e de legitimação do artístico.

São afinal estas as margens em que corre o trabalho de Manuel Valente Alves. Tomado por um lado da necessidade de transgredir os limites do artístico e de religar a arte com a vida - nessa perspectiva de resto se e entenderá o notável ciclo que organizou em torno do tema “O Impulso Alegórico" e por outro lado portador de uma lúcida consciência de que são de certo modo intransponíveis as conclusões obtidas no interior da experimentação artística como ferramentas de directo uso na transformação do real. Mas também alimentado pela vertigem de corresponder às exigências críticas de uma memória da arte a partir de cuja fascinação construiu o seu próprio projecto e a intervenção que lhe conhecemos.

Por isso mesmo também é que o seu trabalho não cessa de se interrogar sobre os mecanismos de produção das imagens, fazendo-se sempre acompanhar de meditações que, à maneira de comentários quer visuais quer gráficos, transcendem o mero domínio do trabalho da imagem para se projectarem no campo mais vasto da produção simbólica. Um pouco ao modo como opera o cinema de tese de um Godard ou de um Straub.

Meditação longamente melancólica sobre o declínio da Europa como cultura, Hotel Europa reflectia afinal sobre tudo isto, ou seja sobre a transformação da cultura europeia pelo dispositivo mediático numa cultura de massas próxima do modelo americano, a pouco e pouco devorando-se a si mesma nos seus próprios princípios. Numa exposição de 89 em Coimbra, "Arte da Pintura" essa constatação de uma perda do estatuto da representação pictural abordava as ruínas da imagem sacralizada da pintura e das suas representações da história.

Numa outra obra de 1992, intitulada "Hotéis", por um processo semelhante de relação entre palavra e imagem, o artista dava-nos conta do desaparecimento progressivo de uma certa imagem da realidade tal como fora convencionada em práticas de representação arquitectónicas, ideológicas, etc., para celebrar uma última vez a beleza e a vacuidade desse mundo (já) perdido para sempre.

Estas diversas séries - e outras ainda de sua autoria que aqui não vejo necessidade de referir - longamente constataram a perda desse peso simbólico da representação convertida pela fina película da imagem em mera informação. Do mesmo modo que vastamente abordaram uma temática de luto pela progressiva virtualização do real cujo desmoronar referiam (a este respeito será esclarecedor recordar a série "Cassandra" mostrada no Goethe Institut em diálogo com a obra de Christa Wolf).

Ora aquilo a que assistimos na série agora mostrada, que só integralmente se poderá compreender se vista em conjunto com aquelas por onde o artista antes se moveu, é precisamente a uma espécie de salto radical. Já não se trata de abordar os mecanismos de virtualização do real como antes o processo de virtualização das próprias imagens. Das imagens desse mesmo real que se vão progressivamente transformando em imagens de imagens cujas referências já não são as da realidade mas as longínquas convenções da representação.

Anunciam também, entre outras, a possibilidade infinita da sua manipulação. À maneira da ideia mallarméana do livro como jogo sem fim de variabilidades.

Ao enfrentar-se com um género historicamente estabelecido pela pintura - a paisagem - e depois recuperado pela fotografia, nomeadamente por toda a corrente pictorialista, as imagens digitalizadas de Manuel Valente Alves recriam a paisagem como pura imagem, como sugestão, diríamos, referida já não a um processo de organização do real, com a sua carga afectiva, conceptual, ideológica e até ontológica, mas um simples processo de organização da imagem. Inevitavelmente com as suas referências - porque toda a imagem suscita a referência, ainda que de um modo selva¬gem1 - que neste caso evoca o pontilhismo de um Seurat ou o ambientalismo de um Sisley, mas também as pinturas diagramáticas de um Peter Schmidt ou as complexas análises de cor de um Peter Halley.

São pois imagens de segundo ou de terceiro grau cujo referente na realidade se perde longinquamente num género e cujo referente na imagem como que saltita entre modos e processos que entre si não parecem ter relação.

Mas diversamente das séries anteriores em que o processo de virtualização do real e as ruínas da representação pareciam mergulhar a meditação do artista numa espécie de vazio disfórico resultante da chegada a um campo em que o sentido se rarefazia, nestas há como que um processo de euforização e de jogo. Quase uma redescoberta de uma função lúdica inerente a toda a experiência artística.

Tanto mais que o artista aplica algo que lhe resta do dispositivo modernista - temas como a inovação, a crítica, a referência, o comentário - a um campo que abertamente já o não é nem conceptual nem ideologicamente, nem sequer processualmente. O seu espaço de errância designa-se agora no âmbito vago do que se diz pós-moderno. Não porque o procure em efeitos de décor, como outros o vêm fazendo, mas porque o seu movimento e os seus pressupostos, como atrás vimos, a isso o conduzem inevitavelmente como quem é excluído num exílio.

As suas figuras, processos e temas, disse-o acima, são precisamente os termos que o excluem das regras do jogo próprio do moderno. É assim também que uma "arte da memória" se vai convertendo numa "memória da arte". Movimento subtil que acompanhamos sem saber exactamente como o verbalizar.

Através da enigmática trama conceptual que até aqui o conduziu, com as herméticas referências à Arte da Memória de Ramón Lull, o místico e filósofo catalão que tanto marcou Tapiès, por exemplo, Valente Alves desenvolve uma espécie de rudimentar gramática das suas imagens que, analógica e algo paradoxalmente reconstrói por um processo digital. Pelas suas referências eruditas, este trabalho demonstra pois não apenas estabelecer uma grelha conceptual de análise dos processos de virtualização da imagem, como ser também alimentado pela ambição de uma dissolução da própria imagem numa cifra. Ao mesmo tempo que toma da ideia de arte e da sua prática concreta uma espécie de referência memorial - a arte que foi - à qual se refere ainda mas sem que se possa explicitar concretamente no seu comentário o que nessa referência resiste como pregnante.

A obra de Valente Alves inaugura deste modo uma etapa radicalmente nova do seu processo interno cujos primeiros resultados desde logo nos deixam antever uma cada vez maior complexificação, ao transferir a ideia de um residual valor cultural para o campo aberto do valor expositivo. Ou seja, aceitando que o médium seja vorazmente atravessado pelo desejo do tecnológico nele arriscando perder a sua própria identidade.

Ao inverter deste modo a grelha do dispositivo benjaminiano de análise da imagem, Valente Alves penetra intuitivamente num campo virgem da expressão artística contemporânea que poucos têm ousado abordar sequer no seu limiar. Esse campo só tem, por agora, um nome: FUTURO.

É com ele que, através destas imagens, rudimentares ainda, já estamos convivendo.

[PINTO DE ALMEIDA, Bernardo, “Memória da Arte”, in catálogo da exposição “Arte da Memória”, Centro Português de Fotografia, Porto, Outubro de 1998]