[Manuel Valente Alves, “A Ciência Inexacta”, 1990]


MANUEL VALENTE ALVES – ALÉM DA NATUREZA OU O «LUGAR» DEPOIS DO CONCEITO por Carlos Vidal

1

Procurando um denominador comum para os vários pólos de desenvolvimento da obra de Manuel Valente Alves – entre a linguagem pictórica estrita (duplamente estrita, poder-se-ia afirmar, na medida em que inclusivamente o próprio vocabulário – a gramática utilizada – era, neste campo, tendencialmente pretextual, isto é, Manuel Valente Alves, nos seus trabalhos produzidos entre 1985 e 1989, ia utilizando formas pictóricas elementares e / ou consideradas arquetípicas significacionalmente, as quais eram passíveis de redução à condição de edifícios compositivos estruturadores das tensões inerentes ao espaço pictórico, ao seu campo gestáltico), entre este trabalho pictórico abandonado em 1989, como dizia, de presença desfeiteada em texturações e empastes cruzados ou coligados com essa descrita elementarização sígnica, entre essa contextualização no resíduo e na geometrização e a linguagem fotográfica remissiva – encontramos a vocação de experimentar, revisitar ou prolongar (como a fotografia prolongou os «mitos» da pintura) a própria história da arte como campo activo de emanações, significantes e significacionais, físicas, sem que tal carácter remissivo se constitua busca alguma de caução cultural.

Encontramos a vontade e a tentação de operar criticamente a partir de géneros convencionalizados ( a paisagem, o retrato, os espaços arquetípicos da memória imemorial, sem data, i. e., numa admissão de que a própria história da arte é intrinsecamente constituída de valores e de uma ontologia que agrega o seu campo, digamos assim, intransmissível, ou de outro modo, de um campo, definido enquanto portador dos seus «conceitos fundamentais» - Grundbegriffe – na terminologia de Heinrich Wolfflin), numa perlaboração (no sentido freudiano, de «mergulho na resistência do rescaldo» - do recalcado pela modernidade, entenda-se) que leva o seu autor a desconstruir (a transformar noutra coisa) esses mesmos géneros e seus «preceitos» (no fundo, a sua intransmissibilidade), desconstrução como interiorização (das «regras»: de Poussin, de Leonardo ou de Richard Long, Hamish Fulton), aprendizagem, vivência conceptual e libertação – libertação, na medida em que, em Manuel Valente Alves, nunca existe repetição (apesar do carácter «forte» da matriz) dos processos clássicos: nem nas pinturas anteriores a 1989, nem no subsequente trabalho fotográfico, cujo paradigma iniciático podemos encontrar numa exposição do autor, precisamente denominada «Arte da Pintura».

2

Neste trabalho, datado também desse ano charneira de 1989, realizado para os X Encontros de Fotografia de Coimbra, Manuel Valente Alves forçava cada parte (cada fragmento mediatizado como fotografia) a integrar uma totalidade, por isso, independentemente do medium utilizado, se podia considerar uma ideia primordial e condutora global para esta (não) sequência de situações. Nesta proposta metafotográfica de 1989, percursora de uma trajectória que até hoje se mantém como pesquisa (onde a inquirição histórica, no fundo, conceptualizadora, se sobrepõe ao mero exercício do experimentalismo, do imprevisível), era usado o texto (excertos, tratados de forma cuidadosamente gráfica, de «Arte da Poética, e da Pintura, e Symmetria, com Princípios de Perspectiva», da autoria de Phillipe Nunes,1615) em contraposição à imagem: víamos o texto – na sua correspondente mancha gráfica – junto a planos muito aproximados de mãos, formas abstractas e diagramas de geometria.

Em «Arte da Pintura», Manuel Valente Alves incidiu as suas atenções e dedicações analíticas numa ideia básica como é a da «construção da imagem» a partir quer dos seus elementos estruturantes (composição, claro-escuro, linha, plano ou diagonais, aliás, como nas pinturas de 1985 – mas aqui mediatizados, i. e. sob o 2º grau da formalização), quer dos elementos enunciados pelo próprio texto citado – evocando um tempo histórico em que a perspectiva era eminentemente considerada como forma simbólica -, partindo daí para tornar factuais (num acto de fundação) os elementos necessários à construção da própria imagem actual, tendo em consideração que as imagens, hoje, já não são construídas como entidades des--significativas porque são elas que povoam, fazem parte do nosso quotidiano de/como objectos-imagem (num plano de indiferenciação real-virtual).

Nesta exposição, bem como em séries subsequentes, sobretudo nos «Hotéis» e em «Cassandra» (a partir da narrativa homónima de Christa Wolf), entende-se claramente o trabalho de Manuel Valente Alves como uma «metáfora desviante», aliando a desconstrução dos géneros a uma sua presentificação pelo lado genealógico: uma metonímia da «paisagem» e do «retrato« (quando não mesmo do medium fotográfico) como géneros estruturantes e primeiros, quer da história da fotografia, quer da história das artes plásticas.

O medium fotográfico serve melhor, sob todos os pontos de vista, estas inquirições (plano da adequação), porque «retrata» sem retórica não-naturalista o conceito (que não existe na natureza, nem no homem, senão enquanto produção) e da própria ideia que preside nos mecanismos transformativos da história – a ferramenta de Manuel Valente Alves.

Assim se comprova uma das «conquistas» desta obra: que a bidimensionalidade, melhor que o efeito cenográfico geral/tridimensional, pode representar e fazer significar as várias dimensões psicológicas do espaço (codificado ou a codificar).

3

Particularizando, seguidamente, Manuel Valente Alves, a série «Hotéis», mostra-nos seis fotografias de paisagens transformadas em objectos. Exploração da coincidência imagem-objecto numa imagem anonimizada com invólu­cro de vidro e moldura, refazendo a distanciação objectual,­ imaterializando o registado, i. e., o próprio processo físico-químico da fotografia, propondo uma peculiar relação entre a imagem e a legenda que transcende a crítica linguística de Magritte (onde parece basear-se), para chegar a uma forma de fazer pairar/flutuar a poética do sentido e do próprio mecanismo representacional, ao modo do caligrama rectificado. Ou antes, ao modo da radicalização de uma das suas funções - a função nega­dora da tautologia: que corresponderia à transformação dos mecanismos da dupla grafia (imagem + palavra para exprimirem uma mesma significação: tautológica), numa reconciliação (literal) da literalidade dos dois parâmetros. Mas deixando restar sempre, contudo e por outro lado, uma conciliação parcial que, para citar Foucault, também a propósito do caligrama, permite «apagar ludicamente as mais velhas oposições da nossa civilização alfabética: mostrar e nomear; figurar e dizer; reproduzir e articular; imitar e significar; olhar e ler» (Ceci n'est pas une pipe», Morgana, Paris, 1973).

Por seu turno, também estas legendas são, de novo citando Foucault a propósito de Magritte, «texto em imagem», texto como imagem (em forma de triangulação texto-imagem-objecto), o que é muito evidente, por exemplo, em «A Ciência Inexacta» (1990) - projecto para livro desenvolvido com o poeta Pedro Tamen-, evidente ainda nos «Hotéis» e em «Cassandra»; sobre isto diz ainda Foucault: «as palavras conservaram a sua derivação do desenho e seu estado de coisa desenhada: de modo que devo lê-las sobrepostas a si próprias; são palavras desenhando palavras». Por fim, se há contiguidades neste «jogo», em Manuel Valente Alves, existe também, como temos vindo a afirmar, distanciações claras (desfeiteamentos), não-relações, primeiro porque a legendagem em Manuel Valente Alves não «diz duas vezes as mesmas coisas», depois porque não as pode­ria efectivamente dizer, na medida em que as imagens destes céus («Cassandra») e paisagens anonimamente repetidas («Hotéis»), surgem aqui numa ordenação não nomeável (não cobertas pelo nome/lexema «paisagem», «céu» - algo que, mesmo admitindo que cobre as ima­gens, por si só não sinalizaria nada), isto é, estamos numa situação assaz distinta da que Foucault vê em Magritte e nas suas versões de «Isto não é um Cachimbo»: «no­mear o que, evidentemente, não tem necessidade de sê-lo (a forma é por demais conhecida; a palavra por demais familiar)». Vemos as inscrições «Hotel Victoria», «Hotel Plaza», «Hotel President», etc; figuradas numa barra branca, que «rouba», por sobreposição, o primeiro plano à paisagem fotografada (suspendendo o seu peso terreno/gravitacional, afastando-a ainda mais do obser­vador, sublinhando-se a coisalidade da fotografia como facto estético).

Duas facetas parecem desprender-se tanto destas paisagens/objecto como dos trabalhos seguintes de Manuel Valente Alves, as fotografias de céus da série dedicada à narrativa «Cassandra». Uma primeira, talvez a mais racional, remete para a «paisagem» como género integrador da história da arte, significante submetido ao olhar do artista de hoje, o qual surge como alguém «contaminado» pela vida urbana ou pela cidade moderna (ou pelos mitos, mas, desta feita «retratados» como ou enquanto «não-lugares»): tal efeito é sinalizado pela palavra «Hotel» justaposta ou sobreposta aos elementos naturais. Por sua vez, os céus de «Cassandra» tendem a ultrapassar esse conflito hegeliano entre cultura e natureza, para passarem de um conflito a um confronto cultura versus cultura, cultura versus memória histórica da cultura, foto­gráfica neste caso, pois uma das matrizes-referência des­tes últimos trabalhos de Manuel Valente Alves são os célebres «Équivalents», de Alfred Stieglitz, trabalhos nos quais tal conflito cultura/natureza é antevisto e superado de forma primeira e pioneira (premonitória?), i. e., num primeiro grau ou numa primeira forma, i. e. de novo, é Stieglitz quem o parece compreender antes de qualquer outro autor, propondo uma estratégia de superação, como explicado pelas clarividentes palavras de Rosalind Krauss: «Cela tient d'une part a une qualité du ciel lui-même, ou plus exactement a une qualité que Stieglitz met en évidence dans ces images. Ce n'est pas seulement que le ciel est vaste et qu'une photographie n'en présente qu'une partie limitée, cela tient plutôt au fait que le ciel est par essence non composé. Ces photographies ne donnent pas seulement une impression de composition imprévue, fortuite, au hasard de quelque agencement accidentel. Elles font plutôt sentir la résistence de leur objet à un agencement intérieur, elles postullent l'absence de fondement de la composition, exactement comme, par exemple, un Readymade de Duchamp court-circuite toute discussion à propos des relations internes entre ses éléments. Le terme de "relations" n'a pas grand-chose à voir ici avec la signification habituelle qu'on lui donne dans les arts traditionnels» («Le Photographique - Pour une Théorie des Ecarts» - trad. francesa - Macula, 1990).

O autor começa por se interrogar, no seio da história (e) da arte, acerca da validade e das possibilidades de relação entre a paisagem/natureza e o que podemos chamar de cultura/cultura (ou culturalização do natural, assinalado pelo véu sépia que cobre as imagens, o monocromatismo como projecção mental), utilizando as novas máquinas de figuração do mundo - a fotografia em substituição da pintura de cavalete -, pondo em causa a representação tradicional (que pode, eventual­mente, coincidir com a representação pictórica).

Trata-se de uma faceta do olhar especialmente moderna: pode fazer falarmos da relação entre o homem moderno - aquele que habita a cidade - e a natureza, falarmos ainda da «conquista» irreflectida da natureza pelo homem, algo que surge aqui metaforizado pelo olhar fotográfico sobre uma paisagem desumanizada (ou, numa primeira instância, anonimizada). Um olhar moderno que transforma a paisagem (remotamente real) em imagem, o facto em situação, isto é, o facto do passado (a paisagem quando registada pela câmara) transformado em situação presente (a condição presente da imagem) - a esta imposição do tempo presente não é igualmente indiferente a transformação destas fotografias em objectos (mais interactivos, que de contemplação).

Do conjunto destas fotografias legendadas, parece resultar um mapa do imaginário, um mapa - que inclui até a indispensável nomeação (nem arbitrária, nem por antítese, como em Magritte) dos lugares - da imaginação como paisagem ou da «imagem como paisagem» como forma de retirar a imagem da lógica da mercadoria.

Ora um mapa de um universo imaginário (e o deslocamento de linguagem provocado pela legenda, torna irreal o que se vê registado) é sempre algo de natureza melancólica, mas não forçosamente nostálgica; melancólico, na medida em que sinaliza sempre várias possibilidades de percorrermos e de nos perdermos num labirinto (se nos lembrarmos dos «labirintos» de Walter Benjamin) - um labirinto obsessivo, quer nos "Hotéis», quer em «Cassandra», ambos em forma de fotogra­fia/objecto, onde a sua irrealidade é mantida pela repetição da insólita situação e da conotação impossível entre a imagem e a palavra (neste contexto, diz Santo Agostinho: «é como se a repetição amadurecesse aquilo que uma certa ligeireza na leitura deixara imaturo»).

Há aqui ainda uma dimensão poética que vai constituir uma segunda faceta destas paisagens/objecto, a qual re­sulta sobretudo da forma de inscrição da palavra sobre (ou entre?) a paisagem/céu. A paisagem surge, neste novo contexto, transformada em lugar idílico (arcadiano), amea­çado, que o fotógrafo regista (ou registou, porque estas imagens não se conectam à datação, como vimos) talvez para testemunhar o prazer intenso, único e irrepetível da sua contemplação (pré-urbana?), remetendo, desta feita sem ambiguidades, para a «pintura de paisagem», mais que para a génese moderna da história da fotografia.

4

Manuel Valente Alves concilia a paisagem com a palavra de uma forma que, por vezes, poderá evocar (citar?) os mesmos moldes relacionais observados no célebre quadro de Poussin datado de 1655 (Museu do Louvre), denominado "Et in Arcadia Ego» (ou seja, "Existo na Arcádia» a região da celebração poética), trabalho no qual esta frase em latim sinaliza um túmulo (o que fez Panofsky atribuir-lhe outra tradução: «a morte existe na Arcádia») para onde dois pastores apontam. «Existo (ou vi) na Arcádia», significa uma visão de algo que não mais se tornará a ver (um «isto foi» - para citar Barthes - derradeiro).

A esta desesperação opõe Manuel Valente Alves um referencial moderno (o hotel e, sobretudo em «Cassandra", o não-lugar do mito), uma urbanidade implícita e ­cosmopolita.

Uma urbanidade cuja singularidade não identitária se equivale ao ser de que nos fala Giorgio Agamben: «o ser que vem é o ser qualquer» («La Cumunitá che viene», Einaudi, Turim, 1990 - trad. port.: Presença, 1993).

[VIDAL, Carlos, “Manuel Valente Alves – Além da natureza ou o ‘lugar’ depois do conceito”, Revista Colóquio Artes, Lisboa, nº 99, Dezembro de 1993]