[Manuel Valente Alves, “Imagens”, 1988]
PREFÁCIO por Maria Helena de Freitas

Uma paisagem e uma natureza-morta, duas imagens fotográficas preexistentes a estes trabalhos e que no seu efeito desencadeador, neles se desenvolvem como objectos de uma obsessiva perseguição do olhar. Um olhar que se quer errante e sem limites, experimentando agora a criação de áreas de permissividade para essa aproximação visual. Ao utilizar em simultâneo fotografia, grafite, óleo, acrílico e colagem, Manuel Valente Alves desenvolve uma estratégia de contaminação que ficciona a aparência dos objectos.

Fotografia e pintura, neste caso, continuam a ser, como sempre o foram no percurso do artista, actividades autónomas e com características específicas próprias. Aproximadas e dirigidas no sentido de um tema comum, não se ilustram nem explicam, mas antes geram espaços pouco inocentes de tensões diferenciadas.

O processo não é acumulativo mas totalizador. Ou seja, o uso de técnicas várias não pretende o esgotamento da representação da realidade, mas o questionar do seu sentido interior, a amplitude da sua existência. Olhar uma paisagem ou um objecto, escolher e executar um dos seus possíveis contornos, fotografar essa acção. Três tempos de uma visualidade que se inquieta perante os limites da percepção. Como se comporta a imagem fotográfica de um jarro no tecido da tela, no sentir de um outro território. Ou como existe a mesma paisagem na expressão matérica das tintas e na superfície lisa de uma fotografia. Os objectos deslocam-se no seu espaço de existência, transformam-se, expostos a diferentes campos de reacção. Os sinais propagam-se elipticamente, alastram como elementos estranhos ao funcionamento específico do corpo destes objectos. Como se o seu autor os deixasse abandonados ao efeito devastador de um vírus. A paisagem é devassada. Só a realidade permanece intacta.

Embora com uma matriz comum, os diferentes processos não se complementam. Provocam-se e reagem sob um efeito de um curto-circuito, e determinam sentimentos de estranheza ou de súbita revelação, que percorrem todo o espaço circunscrito destes trabalhos. Um espaço reservado que resulta da prática amorosa de um voyeur que persegue o sentido mais íntimo do seu território pessoal, de deliberada exclusão mundana. Se o olhar percorre as superfícies, a sua mobilidade é interior, nos rigorosos limites da inquietação e de exigência narcísica.

[FREITAS, Maria Helena de, “Prefácio” in desdobrável da exposição ”Imagens”, Galeria Diferença, Lisboa, Novembro de 1989]