[Manuel Valente Alves, “A Morte de Virgílio”, 1999]

A MORTE DE VIRGÍLIO por Maria Filomena Molder

Eu havia renunciado à minha actividade literária, tanto quanto ela tinha sido exotericamente dirigida ao público, em proveito do trabalho na Sociedade das Nações, porque aprendera que já não era permitido alimentar quaisquer esperanças de poder dar um outro rumo ao curso da história ou mesmo só de contribuir um pouco que fosse para alterar esse rumo, através de uma influência literária junto do público. Mas os íntimos impulsos metafísicos que me levavam para a poesia tinham-se, apesar disso, mantido, e quanto mais os acontecimentos exteriores adquiriam uma figura inevitável – em 1937 já não havia quaisquer dúvidas sobre a tendência funesta desses acontecimentos –, tanto mais intensamente se manifestavam esses impulsos íntimos: a morte, para nós que vivíamos agora de algum modo ao lado do campo de concentração, tinha-se subitamente movido tão palpavelmente para a nossa beira, que o confronto metafísico com ela não se podia simplesmente adiar mais. E foi assim que comecei em 1937, quase contra a minha própria vontade, este livro estritamente esotérico, o Vergil, por assim dizer como ocasião privada de salvação da própria alma.

Esta apresentação da génese de A Morte de Virgílio feita por Hermann Broch, seu autor, coloca-nos de imediato no coração da distância a que ele está de nós (ou a que nós estamos dele?). Qual o escritor que, no correr destes dias, poderia afirmar, sem se tornar motivo de chacota, que escreveu um livro “estritamente esotérico”, que é uma ocasião redentora da própria alma?

Deu-se uma deslocação da vergonha daquilo a que outrora se chamava pudenda para a alma, e o falar da alma, depois que esta foi convertida em objecto disciplinar, conheceu o exílio e mesmo o suplício. Tantos séculos a envergonhar-se do sexo, tão pouco tempo para nos envergonharmos da alma.

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Este livro descreve as últimas dezoito horas de Virgílio moribundo. Elas começam com a sua chegada ao porto de Brindisium e vão até ao seu falecimento, na tarde do dia seguinte, no palácio de Augusto.

A Morte de Virgílio não é a última obra de Hermann Broch, mas parece a última, e é mesmo a última, nem que depois ele tenha reescrito e publicado um outro romence, e deixado, quase publicável, incompleto, ainda outro, postumamente editado. Seria, aliás, uma coincidência deselegante do destino, embora parecesse justamente o contrário, que ele tivesse sucumbido e que A Morte de Virgílio, obra como ele diz escrita quase à sua revelia, tivesse sido o canto de cisne do escritor. Ela não é assim a hora derradeira, mas a última obra. E no caso de Broch isto quer dizer que é a única obra que não se submete à maestria da sua técnica avassaladora de montagem, própria dos outros seus romances, em que o compósito das partes não conhece redenção aparente, não se transcende em unidade por recurso a qualquer fingimento bem achado. A Morte de Virgílio é a única obra em que reina a passagem, o elo lírico, a mão que faz soar as cordas do íntimo, monólogo inteiro, que nunca se converte em confissão entediante e assombrosa da ‘nossa subjectividade’: é o monólogo de um homem doente, que a febre não larga, que vai morrer em breve, um poeta, para quem não é seguro, como o crêem os seus amigos, que para ganhar a imortalidade já não necessita de morrer.

Nas linhas em epígrafe, Hermann Broch, ele próprio, resumiu como se fosse um terceiro, o teor do seu livro, dando início a um comentário sobre as dificuldades da tradução da obra em inglês, da qual beneficiou o original alemão, uma vez que só foi impresso algum tempo depois da versão inglesa.

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Também para esta noite chegava a hora avançada que corria em direcção à sua beira; a noite fazia-se hora de progressiva configuração terrena … noite terrena! Nada acontecia ainda; intacta conservava-se a escuridão nocturna; apenas empalidecia a quietude, perdia a sua intensidade, ficava marcada por sinais quase imperceptíveis, muito incertos, e que somente notaria quem prestasse uma extrema atenção; a quietude parecia desdobrar-se, relaxar-se a partir dos seus mais remotos limites; rodeada de trevas, a criação, sem o seu doce devir, estava inscrita por uma suave e amorosa mão na calma sem ocorrências. Nomes e mais nomes surgiam em virtude da suave evocação nocturna, convertiam-se numa unidade com a memória, adquiriam firmeza pela recordação, tornavam-se partícipes da criação na reminiscência. Cantava um galo ao longe? Latiam ali os cães? …

Descrição de morrer até ao momento em que o olhar não se pode mover, não pode retroceder, esse momento que conduz Virgílio até aos seus indícios pétreos, siderais, atravessando o cortejo imenso que o precede e que o segue, conhecendo a comunidade mística com todas as forças insondáveis da animalidade, com todas as metamorfoses vegetais. Éter é o momento em que toda a coisa se desvanece naquilo que outrora tinha sido: os animais, a glória, a descrença, e mesmo o conhecimento da morte.

Desce-se ao fogo, ao fogo do coração. Entra-se na água, e adeja-se no éter, caminha-se dentro da barca, no éter, para o éter. O éter é sempre despedida de toda a imagem terrena, a única imagem, e fonte de todo o reflexo infinito: o espelho desmedido. Despedir-se é então o absoluto que pertence à terra: até logo, mas não volto! Até onde estamos dispostos a acompanhar aquele que se despede?

São estas as quatro partes de A Morte de Virgílio: I Água – A chegada; II Fogo – A descida; III Terra – A expectativa; IV Éter – O retorno.

De início só faltava inscrever um destes nomes elementares, o nome da terra, depois suprimiram-se os outros. Agora o céu pétreo, o vidro negro e o espelho reconhecem-se no seu anonimato, trata-se agora e apenas dos reflexos, da transparência e das sombras. Ao lado, a imagem de um cão que, graças à técnica do loop em vídeo, não pára de ladrar, não pára de raspar com as patas na terra húmida, entre ervas sujas, não pára de nos olhar e de afastar de nós o olhar. Vê-se também uma árvore, um tronco sem ramos nem copa, prenúncio do céu, rodeada por um halo de terra nua. Ouve-se longínquo, incessante, o ruído hipnótico dos espíritos mecânicos de uma auto-estrada. Tão infinitamente longe e tão infinitamente perto da música das esferas. Em frente desta imagem, a representação compósita, não dilacerada pelo tempo, mas dividida pela intenção, de um templo romano. Em rigor, não um templo que tivesse sido desenhado, mas o desenho de um templo a construir, um projecto de arquitectura. É deste modo, por um gesto inacabado, por um esgar, que se suspende a oscilação do tempo, a repetição do tempo.

Nesta exposição, a supressão dos nomes elementares é uma espécie de ‘imagem e semelhança’, obediência ao modo como na obra de Hermann Broch o nome se despega de toda a coisa, ao modo como a terra se torna naquilo que está a ser edificado nos recessos do sono de um poeta moribundo. Mas como o nome é ainda o último resíduo que a terra nos entrega, que a terra nos devolve sempre, os nomes pediam uma inscrição.

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Uma homenagem tem sempre qualquer coisa de sacrificial e, ao mesmo tempo contém um elemento dissolutor do sacrifício, que alastra sobretudo quando a coisa homenageada não se pode reconhecer na homenagem: há uma dívida que ficará sempre por pagar. Ousadia que não goza da tranquilidade, própria do desafio, de vencer ou não vencer. A homenagem não é uma justa, um combate entre iguais. É neste desacerto que esta Morte de Virgílio está cravada.

Quer dizer, não há qualquer vestígio da estrela do Oriente, a estrela que guia aquele que é arrastado pela sua própria agonia e se salva nela, o que é a prova provada da impossibilidade de Manuel Valente Alves fazer sua a expectativa da “salvação da própria alma”, e também a prova provada da sua lucidez acerca disso. E no entanto, vê-se o fundo do poço, o poço dentro do poço onde jaz a serpente que encerra sobre si o círculo do tempo.

Por isso a única citação de A Morte de Virgílio só poderia ser da IIIª Parte, a Terra, a terra, o intervalo, ainda por redimir, entre o fogo e o éter.


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Hermann Broch nasceu em Viena a 1 de Novembro de 1886 e morreu a 30 de Maio de 1951 em New Haven. De origem judaica, converteu-se ao catolicismo tinha 23 anos. A Morte de Virgílio foi escrita entre os anos de 1937 e 1940.

Nota: Este texto é parte integrante da instalação “A Morte de Virgílio”, concebida por Manuel Valente Alves, que foi apresentada na Galeria Diferença, em Lisboa, de 11 de Março a 29 de Abril de 2000.