[Manuel Valente Alves, “Just Reality”, 2001]

REDES por Maria do Carmo Serén

Da janela olhamos o mundo que desfila, fragmentado como uma evocação, numa janela de ecrã: por isso olhamos.

O mundo em si mesmo, anárquico e barroco, já deixou há muito de merecer a nossa atenção.

Esta sequência de acontecimentos que perpassa em feixes de luz e por vezes se repete como as imagens de um devaneio persistente, tem o ar de família dos nossos tempos. Não é o mundo do delírio esquizofrénico das máquinas desejantes dos anos 70, metáfora que alimentou a nossa imaginação político-social, quando o inimigo número um da liberdade tinha um nome, o capital corpo sem órgãos distante e macio que Deleuze e Guattari nos tinham oferecido. Identificamo-lo sem dificuldades, já o tínhamos adivinhado nos "Tempos Modernos" e na luta contra a perversidade do tempo das máquinas sem mãe de Buster Keaton, quando o tempo nos surgia como o tempo do mundo e não do nosso corpo.

Hoje, ao que se diz, estamos saturados de imagens, cansados de quadriláteros e caixilhos de luz, que invadiram em estatísticas excelentes e bem comportadas, o que resta do espaço público nos não-lugares e o mais que violado espaço privado. Aí tomamos contacto com regularidades, repetições, ignorantes dos fluxos urbanos de que fazemos parte, mas recebendo no corpo o impacto da informação. No lugar do utente, que substituiu o do consumidor.

Manuel Valente Alves oferece-nos o discurso entrecortado do quotidiano em imagens que se sucedem no ritmo da vida. Acontecimentos onde os movimentos dos indivíduos e dos grupos perpassam com a desorganização aparente que encontramos no cadinho da gota de água onde se agitam amebas e paramécias. Cidades do mundo, aeroportos, trânsito que cruza ruas e estradas, abertas na superfície como caminhos de bichos efémeros, que por vezes nos levam a um jardim ou desaguam numa praia, trânsito de contentores de almas e mercadorias que se interrompe, obedecendo apenas, porque nos achamos distanciados, a uma geometria fractal, relativa mas persistente. Inteligível, porque é assim que somos. Como no discurso do consciente, abertas as portas da memória, as mesmas imagens repetem-se, olhares de fora para dentro onde se vão sinalizando, aqui e ali, os referentes de vida pessoal do autor, como dispositivos-farol de identificação e recuperação da memória guardada.

Conhecemos o mundo, afinal, através dessas imagens imateriais e dos símbolos que elas transportam, porque são imagens de manufactura humana. Estas imagens referem não a realidade concreta, ou aquilo que consideramos concreto fora de nós, mas a nossa vida interior.

Este delírio de luz e sombra e movimento que enche as ruas, os cantos e as esquinas, as instituições que identificamos com edifícios, as próteses efectuadas sobre a Natureza e sobre o destino do homem que caminha sobre betão em ar climatizado, é-nos não só familiar, mas sinal de pertença. Foi-nos agora, é-nos num indeterminado amanhã, neste presente expandido que os Media nos vão oferecendo e fazemos nosso.

Em frente à complexidade do mundo, mesmo em diferido, essa teoria de evolução que é o nosso olhar e o nosso corpo segregam um manual de síntese do entendimento imediato, que é a globalização da experiência e a memória dessas conversas que o entendimento, ao que dizem, desenvolve consigo mesmo. Aí, o gosto, a justiça e verdade, bordões fundamentais da nossa forma de lidarmos com as coisas e com os homens, unem-se com aquela espontaneidade que Kant laboriosamente lhes negou.

Unem-se porque é condição do homem ser tudo em si, passado e tradição, hereditariedade e linhagem, futuro ou horizonte: se assim o desejar. Para lá de todas as razões, para lá de todos os criticismos, o homem é - sempre? - a razão de todo o seu passado e todo o seu futuro, que apenas para si convergem. Tem em si todo o mundo e usa-o na forma sua.

É este o olhar de Manuel Valente Alves, nestas imagens que buscam o arrimo da legenda para frutificarem na sua aparente alienação. Porque a vida, por muito auto-organizada que seja, é sempre contingência, está sujeita a uma auto-organização maior, a determinações e acasos de que ainda não temos o código.

É o olhar de síntese de quem é médico e tenta conhecer a disposição e as carências do corpo, em época de manipulação biogenética, nestes nossos tempos em que a Biologia parece morrer, porque o homem já não tenta descobrir a Natureza, mas recriá-la.

É o olhar de quem é artista, pintor e fotógrafo que procura aceder, através da memória das origens ou do arquétipo que fundou a figuração e/ou a fotografia, à ultrapassagem de um discurso de possessão que fundou a Modernidade e colonizou as artes. Olhar de poeta que não interroga o conflito dos contrários, a herança da dualidade da luz e da sombra que diabolizou a história da cultura com que ainda fazemos os discursos de interpretação e domínio. Multiplicando imagens e representações-em-nós, deixando que elas interfiram com as nossas percepções da realidade na força da sua fragilidade e dispersão sem fundamento para insinuar um argumento maior.

Do gosto

O céu estrelado por cima de mim, a lei universal em mim - quem concordaria hoje com o olhar estético de Kant sabendo que esse céu estrelado não cabia nas divagações de um senso-comum, mas era, antes, o céu organizado e ordeiro de Newton, sumariamente concorde com uma moral simétrica, que era o próprio destino do homem? Habituamo-nos, no interior do discurso da Modernidade e da Ilustração, a entender o juízo do gosto como distinto do sentir, um juízo estético como apreensão do belo sem a mediação de um conceito. Em o "cada objecto que excita um instinto, excita também uma emoção", das palavras de William James ficava excluída a idealização do sentimento estético; o critério do gosto, embora não esclarecesse sobre o objecto de reflexão estética, era um juízo que fazia aceder à moral, esse destino que a mal ou a bem, entendemos como definitivamente humano. Asseguram-nos, hoje, que William James tinha razão, que essa emoção é confluente com o processo voluntário e racional que a desencadeia e assim, na emoção cabe tudo; a emoção estética é, simultaneamente, um processo da razão - uma forma de escaparmos ao caótico do mundo e à ideia de desintegração - e um movimento do corpo. A arte contemporânea, negando a contemplação e o discurso das coisas políticas, tendendo a fazer-se dentro do modelo holístico, surge como um cruzamento de linguagens; o autor deixou de se apropriar do mundo através da arte, da literatura ou da filosofia; essa apropriação passa a ser feita pelos Media e orientada pela sensologia, a forma não romântica de sentir. O sentir contemporâneo resulta, por sua vez, da utilização numa escala, obsessiva, da informação e fruição mediáticas; a socialização de que falava Lipoveski fundou e foi fundada pela sociedade da imagem e do sentir em diferido. A experiência do mundo transladou-se para as experiências transmitidas e deu origem ao sentimento "já sentido". Porque a emoção é o sentir, mas o sentimento é a reflexão sobre esse sentir, a partir dos agentes desencadeadores e desencadeados na emoção.

Num processo já entrevisto por Umberto Eco para a cultura de massas, os Media apropriaram-se, a seu tempo, das formas científicas, artísticas e literárias e formataram modelos mais simples e abrangentes para fazerem circular a arte do sentimento e do gosto estético, antevendo a cultura de mosaico de revivalismo e multiculturalismo numa estrutura actual e sincrónica. A sensologia, essa forma de registar, através de sentidos, exigentes porque esgotados, em visualizações experimentais, o mundo e o outro através de esquemas de informação mediática, exerce-se, agora, numa civilização da coisa, onde a cultura artística já não é o encontro com o génio, numa civilização ainda do espectáculo, mas numa cultura da paisagem. O que caracteriza este sentir contemporâneo é o alheamento do "já sentido", que exime da responsabilidade e da experiência temporal. O homem é aqui não o apeado animal que pensa, mas uma coisa que sente. Porque, afinal, no processo de desconstrução criadora de identidades, os sujeitos relacionam-se com o tempo de forma diferente. Onde antes era necessário o passado - a memória pessoal e colectiva - encontra-se hoje a alteridade e o hibridismo: estar no meio, entre as coisas, rodeado de interfaces sem aderir a nenhuma delas, é viver o presente com o novo e tentacular corpo electrónico.

Há mesmo na identidade-hoje um desinteresse pela memória e pela categorização estética que terá de passar pela negação da solenização dessa memória que povoa os museus e os arquivos. A palavra de ordem que acompanha a desconstrução do objecto, do tempo e do espaço é a transgressão dos sentidos e da autoridade - que faz a festa dos acontecimentos do saber, que transforma em centros comerciais coloridos as instituições museológicas, que trata por tu os "génios" do passado e as suas obras, que reproduz nos brinquedos e nas agendas de bolso as "Pietá" de Miguel Angelo ou as virgens de Murillo.

Pensamento do presente, como esta sucessão de imagens de Manuel Valente Alves, onde a memória do estritamente pessoal se explica e identifica com a memória do tempo e do espaço, sem que estas sejam uma hermenêutica, um passado ou um futuro, uma utopia.

Presente e nunca ausente. Porque estas imagens estão aqui a decorrer, a agitar-nos a atenção e o ajuizamento, a determinar os nossos argumentos, a inscreverem-se no nosso corpo, num círculo de eterno retorno que se acaba na sua própria organização e ainda lhes confere maior actualidade.

Inesperadamente, não é uma festa dos sentidos, mas uma contenção de memórias, um ruído persistente da sonoridade da beleza tranquila, que aflora os sentidos e o "já sentido" como a passagem ténue de um vento de Verão.

E, entretanto, vivemos a sociedade enigmática. O enigma desta sociedade que é a nossa é ter-se tornado um lugar de trânsito, onde a neo-apatia e o culto da possessão podem ajudar a uma ruptura completa com o subjectivismo. O sujeito tornado coisa, na confluência dos "looks" vindos do exterior, que o definem e caracterizam, reactualizaram o problema da aparência e da coisificação: da cultura juvenil, os cuidados com o corpo e com o vestir, ao "no future and no feeling", à deriva na Net ou a sensologia virtual; do excesso de tudo sentir ao estoicismo e à prática da "endurance", tudo aponta para um auto-esvaziamento, para o uniforme, a farda, para a paisagem. No enigma justapõem-se o racional com o irracional, a coincidência de contrários - o enigma habita sempre o presente, onde se verificam os contactos entre divergentes.

É no pensamento enigmático que se unem a vida afectiva, intelectual e prática, num modo único de estarmos conscientes: o trânsito do mesmo para o mesmo. O que pode ser entendido com narcisismo e fazer-nos procurar a identificação nestas imagens que também se justapõem, uma a uma, muitas a muitas, entre si e com a legenda que corre inexorável a lembrar-nos que a Estética é um conceito vazio quando termina no círculo fechado da ideia e da forma e esquece que outras dimensões da acção e do olhar do homem marcaram o fim na crença na sua bondade para se (re)conhecer nos outros. A via narcísica é, dizem-nos, vazia, falta-lhe a capacidade de experimentar emoções pessoais - marca uma existência fria e nihilista, conforma este ar de família da vida contemporânea. Mas na realidade virtual sente-se com os sentidos, usa-se o sujeito e o corpo, desata-se uma sensologia sem freio e sem limites, porque as próprias fronteiras da responsabilidade não são convocadas. A crítica é, ainda, a do essencialismo. Uma crítica que valoriza uma certa consciência, herdeira da divindade e desvaloriza o transitório que é, ao que tudo indica, a lei do mundo.

Culturas, comportamentos, feixes de traços que constituem os estilos, a agitação estética do pequeno mundo numa gota de água. Aqui sentimos as imagens que fazem, afinal, as páginas do nosso imaginário. Reconhecemos lugares, gestos e movimentos. Suscitam-nos um olhar antropológico ou um olhar geográfico, mas deixamo-nos seguir pela desconstrução mais velha do mundo, o arbitrário ritmo das coisas e do corpo, o jogo mínimo que entretece as águas de um rio.

Da justiça

As imagens tomam-se diferentes numa inconsciente perspectiva de Gestalt quando a legenda (ou a voz) que corre, em ritmo mais lento, nos entrecruza a cultura do espectáculo e a cultura da escrita. Dispostos para o sentido desta, fazemos das imagens o fundo, com um inesperado ritmo da ânsia. O texto literário fala-nos dos becos sem saída enredados pelo dispositivo da Lei e da Justiça. Com o narrador sabemos que também nós, resultados sociais de uma trama de sociabilidade "já pensada" por velhas ideologias, não sabemos como julgar. O relato situa-nos no momento em que todo o edifício da Modernidade ruía dramaticamente, arrastando consigo as certezas do progresso e da bondade do homem.

Deixa em seu lugar fantasmáticas questões nunca asseguradas pela esperança: em que medida o dispositivo de poder nos cria uma liberdade impossível e perigosa? Que limites da responsabilidade, qual o valor do respeito próprio? A justiça não é uma componente da cultura do homem, mas uma trama de medos e desejos, onde o corpo pode esmagar a mente e a mente pode esmagar o corpo. Onde o bem e o mal se confundem.

Aprendemos que o comportamento interindividual e social só são pacíficos se cada um se mantiver no espaço das expectativas dos outros. Entre saber ou não saber limites codificados de atitudes sociáveis. Kant, ao abrir a porta da Modernidade do relativismo da Ilustração, considerou que a Moral era epocal, construída com os interesses e o saber do tempo em torno do imperativo categórico da espécie. É a lei do "juste milieu", do senso-comum, sem desígnios divinos ou naturais, em momento de "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão".

Somos seres físicos isolados do mundo e dos outros pela pele, morremos e chegamos sós mas temos uma liberdade que inclui todos os outros e o mundo todo porque estendemos a mente até aos confins da nossa técnica. Entregamos, de modo crescente, a responsabilidade que é o reverso da liberdade, às companhias de seguros, aos estados, aos governos, às instituições de que não fazemos parte, à publicidade e aos diversos interfaces electrónicos.

Como julgar os outros se perdemos pontos de vista, o sentido de nós mesmos, com a identidade entre o que está dentro e o que está fora, quando a separação entre interior e exterior era a norma da cultura do livro que tendemos a abandonar?

Manuel Valente Alves deixa-nos no limiar destas reflexões: permite que as imagens se juntem apenas porque é assim que as sente, sem retórica e sem juízo de valor, mesmo que elas, entre si ganhem a disciplina da associação e da contiguidade. Mostra-nos que as grandes narrativas estão ainda aí, onde devem ser desmontadas, incongruentes como uma cultura que é complexa porque ainda desconhecemos as consequências em nós dos seus efeitos. Diz-nos ainda que a vida é tudo isso, esse mar de conceitos e de morais, de interditos e liberdades, de vozes e de silêncios, um rio de inventários e de chamadas onde o tempo do mundo nos escorre fácil e tão rápido como tudo que é gratuito e desperdiçado.

Porque, afinal, também a moral é historicista e é aí que, nela, se situam conhecimento, justiça, direito e a própria mente que hoje expandimos com os Media para lá dos termos de um corpo arcaico.

Da verdade

O pragmatismo ensina-nos a olhar uma filosofia sem espelhos. A des¬montar uma filosofia que aceitava que o conhecimento espelhava em nós o Universo que nos rodeia, porque a ciência aceitava que o mundo era feito de coisas tão simptes e o conhecimento dessas essências nos dava a chave e o padrão de todos os discursos de interpretação de verdade. Resultavam filosofias edificantes, que construíam os alicerces da verdade do mundo e do homem e traziam consigo uma ideia do homem bem no centro de tudo.

Os pragmáticos preferem a posição holista onde as palavras retiram os seus significados de outras palavras e não de uma hipotética virtude do carácter representativo, da sua transparência em relação ao real.

O conhecimento não sendo entendido como a simples revelação de um segredo, ou a iluminação de uma obscuridade, nem mesmo a exposição de um conceito dado à priori, instala-nos no conceito de "dobra", de prega, que remete para a forma da evolução do cérebro ou do Universo: o desdobrar, o desenvolver, o exprimir qualquer coisa que está enovelado, envolvido, recolhido sobre si.

Nem segredo, nem representação, antes a consciência aguda de que os instrumen¬tos conceptuais são insuficientes para o movimento espiral das coisas. O movimento da "dobra" move-se em relação a um entretecer muito apertado de coisas diferentes e a noção de um mundo complexo, cheio, em que tudo, como nestas imagens, é dado, está disponível. Textos, imagens, stocks de dados contribuindo para uma mentalidade estóica, atenta ao peso dos clandestinos no discurso, vivendo um tempo presente que resulta da inflação do actual, mas que também revela uma mentalidade barroca, modo de sentir anti-nostálgico.

A imagem teve sempre uma relação inquietante com o real. Pretendia-se, nome¬adamente com a fotografia, uma operação de "mimesis", usava-se a imagem fotográfica como prova, a imagem como representação do real ainda mais assegurada e minuciosa do que o olhar.

Acredita-se, agora, que se inverteu a primazia da imagem sobre a realidade. A imagem numérica pode ser autónoma em relação ao real, no mundo do espec¬táculo integrado e da realidade virtual, a aprendizagem e a experiência valorizam a imagem e secundarizam a relação directa com o mundo e os outros.

A ideia de perda do real, que preenche as preocupações dos apocalípticos da imagem de computador, apenas sugere que se encontrava correspondência entre as representações e a realidade, essa espécie de autenticidade que se considera perdida. A ideia da perda da aura e a desqualificação do génio também nos dizem que o que se perdeu foi essa ilusão de marca de uma realidade distante; mas realidade, ainda.

A realidade também se transforma. Os computadores aceleram os nossos tempos de reacção e o mundo ficou sitiado de redes electrónicas que tendem a uma estrada global - ondas de corrente eléctrica em campo electromagnético que podem demolir todas as fronteiras e abrir caminho aos nómadas da informação. Ver mais, (globalizar o ver), ouvir mais, (para lá dos Media), e sentir mais, (usar, como dizia McLuhan há quase meio século, a humanidade como nossa pele), está no campo consentido da arte. A verdade da arte não é só teoria e estilo, mas também as nossas percepções. E hoje podemos entrar fisicamente no design dessa realidade construída pela nossa imaginação, sem recordar que a vontade da verdade é a vontade do poder.

Há sempre um ir e vir entre duas situações, a do autor e as suas imagens, a da sua cultura e o seu olhar. Tal como na vida, no esgotamento, no envelhecimento ou nas leis da termodinâmica, todas as concepções, perante uma gritante evidência dos sentidos, têm de ser falibilistas.

O que é a verdade quando grandes fenómenos sociais ocultos controlam a aparência do mundo e do social? Quando, em estatísticas a haver, homens e mulheres combatem a unidade dos géneros à sua maneira, aumentando ou diminuindo a sensibilidade do corpo, quando recua a ideia de real e se afirma a ideia de que as "coisas não são, mas apenas tendem a ser"? Da cultura de massas criada pela televisão passou-se a uma cultura de maior autonomia frente às mensagens e ao consumo automático. O homem de massas foi homogeneizado e despersonalizado num mundo de "tendências e rumores" que substitui o real.

Fora do mundo da realidade, a aspiração à verdade, a uma verdade aqui e agora, susceptível de crítica, pode tomar-se o motor dos destinos de grupo e dos destinos individuais. Mesmo quando o pensamento crítico perpassa insólito sobre o esboroamento de todas as grandes convicções. E o convidado de pedra da velha moderni¬dade apenas pode usufruir de uma oferta de banalizacâo. Porque até o enigma com que levantamos o nivelamento que subtrai as coisas ao movimento do devir, à memória do que marcou a nossa incerteza e a ironia céptica do presente, pode ser banalizado. Numa situação onde tudo acelera, excepto o homem, a questão deixou de ser económica ou social, mas psicológica.

Numa vídeo-cultura como a nossa, o vídeo explica o aspecto frio, pragmático e nihilista da existência contemporânea. Canaliza uma forma de sentir exterior, negando a interioridade, passiva, negando a actividade do sujeito. Ao violar as fronteiras do orgânico e do inorgânico - da vida e das coisas - o registo vídeo assegura que a cultura não é, de facto especular: o espelho é a própria realidade humana.

Esta experiência no interior do já sentido e do homem-espelho, paisagem de todas as imagens e todas as linguagens, segue a direcção contrária da subjec¬tividade. Mas não se orienta para a objectividade.

Há, sempre houve, intercâmbio, osmose entre homem e coisa. Próteses que auguravam prolongamento de membros e prolongamento dos cérebros, hominizacão e simbolização. Linguagem e escrita. Autómatos e cyber-men.

A expansão da consciência fez, de facto, encolher o planeta. O universo já não funciona à escala do corpo humano, da medida do passo, da palma da mão. Fomos projectados para fora da tradição humanista, caíram as barreiras entre o sujeito e o meio.

O que nos diz este tempo de imagens, de texto, de memória dos dias de Manuel Valente Alves é que se tornou fundamental restabelecer a relação entre a arte, a tecnologia e a cultura. Porque o momento da arte é aquele em que a tensão da vida é excessiva. Numa época tecno-dependente, mas sem tempo para adaptação ao novo corpo, o novo utensílio integra-se no corpo e na mente.

Dificilmente, de modo fantasmático, embora incorporado na máscara psicológica. Integrar a vida pessoal no tempo do mundo - e não o tempo do mundo na vida pessoal -, saber viver o design e a verdade do seu tempo numa reflexão e numa disponibilidade que é de todas as culturas e supera o multiculturalismo, pode ser a forma de ver estas imagens. Afectivamente.

Ou sentir que a coisa e a obra são a estranheza, a metafísica do mundo, o que está para lá do homem, conectado, submergido por apelos, mas guardando no interior da sua pele a dúvida e a inquietação.

[SERÉN, Maria do Carmo, “Redes” in “Just Reality”, DVD, 2002, Centro Português de Fotografia]