[Manuel Valente Alves, “Hotel Europa”, 1998]
A QUEDA DOS ANJOS por Luísa Soares de Oliveira
Manuel Valente Alves apresenta o vídeo “Hotel Europa", uma longa sequência filmada do interior de um comboio, durante uma viagem entre Viana e Praga, com a duração de 50 minutos. A banda sonora reúne excertos de musicais de Heinz Holliger, Heinz Reber e Sofia Gubaidolina, Noé Sendas mostra um video a preto e branco de muito menor duração (4,40), montado em "loop" (sem princípio nem fim), intitulado "Impulsos e hesitações".
O vídeo é projectado num ecrã de secção quebrada como se fosse um fragmento de tecto. A sequência mostra uma rapariga que cai, filmada de baixo. A banda sonora é feita de uma colagem de monólogos de diversos filmes de Godard (sendo que a imagem não pertence a nenhum desses filmes), que acabam por interagir em artificiais diálogos. Nem o início, nem o fim da queda são mostrados. A queda é continua e infinita, como é indicado, no título da exposição.
O processo de construção da Obra de Sendas é particularmente significativo: o artista partiu da composição da banda sonora, da pesquisa e recolha dos monólogos de Godard, tendo sempre presente, no espírito, a sequência de imagens que iria utilizar. Provavelmente, porque de filmes se tratava, os excertos sonoros evocavam eles próprios imagens como a imagem da queda evoca não só a ideia mais próxima (a morte, o suicídio), como a da desagregação.
O trabalho de Noé Sendas é um trabalho sobre a morte, não só física, mas também sobre a morte a que a memória submete toda a informação comunicada.
A obra de Valente Alves trata também da conservação das imagens pela memória e pela História. A câmara mantém-se fixa durante toda a sequência, e vai registando as imagens que se sucedem no seu campo de visão. O registo adquire assim falsa qualidade sistemática e científica, como um falso registo antropológico - porque as imagens são manipuladas na pós-produção. Casas, campos, vedações, resquícios da antiga fronteira entre leste e oeste europeus, viajantes, depósitos de materiais obsoletos possuem agora uma mesma qualidade indiferenciada que impede qualquer juízo estético ou de valor.
Contudo, para o viajante europeu que inevitavelmente se encontra por trás da câmara de vídeo, o percurso feito possui ele próprio uma história, que se confunde com a história da Europa central e particularmente com a história da Europa central dos anos mais recentes. A distância física, traduzida pela duração temporal do filme, é dobrada por uma outra distância, esta agora mental: a distância entre o quotidiano anónimo, indiferenciado, comum, sem tempo nem história, e o peso de uma sucessão de acontecimentos precisos que ocorreram num preciso momento. A banda sonora acentua esta disparidade: ao anonimato das imagens, contrapõe a especificidade de um lugar, de uma cultura, de uma criação artística, afinal.
A exposição, comissariada por João Pinharanda, é constituída por duas das instalações que integraram a colectiva “Observatório”, da responsabilidade do mesmo comissário e mostrada em Madrid em Fevereiro último, por ocasião da Feira internacional de arte (ARCO'98).
[SOARES DE OLIVEIRA, Luísa, “A queda dos anjos”, Jornal Público, Lisboa, 11 de Setembro de 1998]