[Manuel Valente Alves, “Hotel Europa”, 1998]

... EM SESSÕES CONTÍNUAS... por João Lima Pinharanda

A dupla exposição individual que agora se apresenta recupera obras mostradas em contexto muito diverso. "Observatório", assim se intitulava o projecto colectivo onde inicialmente integrei as peças de Manuel Valente Alves e Noé Sendas. A exposição teve existência paralela à realização da feira internacional de arte de Madrid (ARCO 98) e fazia parte da vasta iniciativa (Ministério da Cultura/Instituto de Arte Contemporânea) destinada a reforçar a presença da arte e cultura portuguesas na capital espanhola. O uso de imagens de registo mecânico e reprodutível (da fotografia ao vídeo) e a aproximação ao real segundo diferentes ângulos (do auto-retrato ao registo sociológico) unificava uma escolha a que a fortíssima presença do espaço de montagem, o interior de uma torre-reservatório de água, acrescentava um suplemento visual e metafórico.

Encontramos agora as mesmas obras ("Hotel Europa" e "Impulsos e Hesitações") desintegradas do discurso curatorial anterior e num espaço de montagem arquitectonicamente neutro. O que continua a unir ambas as obras é uma série de recursos técnicos comuns: a projecção vídeo e áudio; e, muito significativamente, o conceito de imagem interminável fornecido pela solução de imagem em loop, quer dizer de imagem contínua, na qual não se percebe claramente onde se situa aquilo a que estamos habituados a chamar princípio, meio e fim. O que une ainda estes trabalhos é constituírem-se como projectos de intercomunicação e de análise das modalidades de comunicação de um saber, é o estarem possuídos por um comum sentimento de perda e por um comum desejo de recuperação de memória(s).

A solução em loop acentua a sensação de circularidade que se obtinha no visonamento dos filmes tradicionais, passados em “sessões contínuas” nas velhas salas de cinema de reprise dos bairros ou, melhor ainda, a que se obtém nos filmes porno e nas salas que os passam também em “sessões contínuas” - aqui, a circularidade é já interior às próprias cenas: idênticas, não-narrativas, nauseantes e ainda assim magnéticas imagens.

A volta sobre si mesmos que os aviões realizam nos festivais aéreos, que os mergulhadores, os ginastas e os acrobatas repetem antes de tocarem as águas, os aparelhos e colchões ou as redes durante a realização dos seus saltos mortais ou que o público vive nas corridas vertiginosas das grandes montanhas russas, essa experiência do looping, essa laçada aérea e gigantesca fisicamente vivida pelos protagonistas da aventura acrobática pareceria, quando transferida para a dimensão de simples imagens filmadas, poder ficar transformada num puro exercício mental. Retirada a dimensão física, abismal, desse círculo traçado em escala gigantesca ou humana no espaço real, tudo pareceria vocacionado à tranquilidade de uma observação, de uma constatação exterior: algumas imagens se encadeariam ininterruptas e circulares num ecrã bidimensional. E, no entanto, essa tranquilidade não acontece: o olhar e a audição arrastam-nos para uma ilusão que se torna, de novo, física — virtual mas irresistível e incómoda; o sentido das obras não obedece a qualquer linearidade temporal e torna-se mesmo mais complexo do que a simples constatação da simultaneidade de estratificações comuns a qualquer projecto narrativo ou a qualquer análise do real.

Sem princípio, sem meio, sem fim - ou onde cada imagem pode ser tomada como princípio, como meio e como fim - a obra cria simultaneamente uma monotonia serial e repetitiva, que já os aparelhos de trucagem óptica anteriores à invenção do cinema apresentavam, e uma sensação de queda ou rodopio. De solução leve, acrobática, elegante e aérea torna-se na pesada imagem de uma metáfora autofágica (qual serpente Uruboros), obsessiva (expressão de um pensamento-som/imagem repetitivos) e aquática (vórtice de águas escuras).

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Manuel Valente Alves: Imagens sobre a Europa

A obra é tomada como registo e transmissão de uma memória e de uma reflexão. Não memória de uma viagem pessoal mas de uma civilização em risco de terminar a sua viagem, de perder a sua identidade, a capacidade de a afirmar. Valente Alves usa imagens de uma longa viagem de comboio (Viena-Praga) como elementos capazes de figurarem uma investigação e uma construção reflexiva à memória colectiva da Europa, à imagem que a Europa tem de si mesma. Estamos no coração geográfico do continente, numa Europa de cultura específica embora muito compósita, excêntrica às grandes potências (ou melhor, fronteira de vários mundos) embora essencial ao desencadear da factologia política e cultural do continente e do mundo.

O que as imagens/sons nos transmitem é uma imagem da deadência. Essa realidade discursiva é dada em dois diferentes momentos ou níveis. Por um lado, temos as imagens — digamos que elas são objectivas, estavam lá quando o artista as registou. Por outro, temos o som. Ele resulta de uma investigação posterior ou de uma associação física posterior. De facto, o artista já conhecia os compositores que utilizou; e as imagens que viu da janela do seu comboio e fixou em vídeo foram, desde o início, pensadas/vistas ao som dessa memória. Do mesmo modo, o artista partiu para esta viagem simbólica com a carga ideológica que a recente história da Europa (de todo o século mas também a da última década) lhe forneceu. Assim o trabalho imediato da câmara é, desde logo, determinado por uma vontade de encenação discursiva e não por uma falsa objectividade. A máquina é usada de modo fixo ou à mão livre, regista sucessões de planos profundos e de planos aproximados, de grandes extensões de paisagem rural e de densas citações de elementos industriais, tecnológicos e urbanos ou a aparição momentânea de personagens humanos que se integram como elementos abstractos. É na montagem que se acentuam os jogos de velocidades lentas e rápidas, as composições de imagem com muito altos ou muito baixos horizontes (onde alterna um céu cinza ou azul), que surgem imagens cujo tratamento tomou em quase-grafismos quase-abstractos ou em longos momentos descritivos, que curtos momentos de desfocagem alternam com as imagens focadas. Há alguns pontos em que os recursos de estilo se tornam mais visíveis — embora de modo sempre neutro: quando se verifica uma súbita alteração de ponto de vista (a câmara muda de janela ou a imagem corre no sentido inverso) parece que vamos descodificar o finalmente tempo real da viagem e o seu sentido simbólico; quando a câmara parece deixar a terra e fixar-se no céu ou quando o som de súbito desaparece (entre dois tempos da banda sonora) deixando a imagem entregue a si mesma parece que vamos descodificar o imediato valor visual das imagens e o seu sentido poético — mas, afinal, regressamos sempre ao ritmo geral da obra, toda a diferença se nega e cada interrupção é uma propositada excepção rítmica.

A viagem não termina, porque as imagens se encadeiam sem fim, mas a extensão temporal da obra é suficientente longa, a sucessão de diferentes signos é suficientemente vasta para conduzir a obra a um destino narrativo. Uma viagem longa é feita de repetições que a velocidade, o ponto de vista interior ao comboio, o impossível reconhecimento dos lugares exteriores, a cadência rítmica das estações de caminho-de-ferro, primeiros "não-lugares" da civilização industrial, acentuam. Mas se o espectador se dispõe a apreciar a obra na totalidade, sentado frente à janela em que o ecrã se transforma, entra no jogo do artista: supõe-se ele mesmo em viagem, vai pensando noutras coisas (pensamos em todas as coisas da vida ao mesmo tempo que olhamos uma paisagem e não obrigatoriamente na decomposição da própria paisagem), percebe a relação entre a intenção programática do autor e os elementos significantes da paisagem, associa o tempo de projecção a um tempo-lugar cinematográfico onde se situa como personagem, integra uma narrativa — e um monólogo...

Sem registo do som original do comboio os fragmentos da música e dos textos das canções da banda sonora surgem também sem relação evidente (descritiva ou ilustrativa) com as imagens, embora os compositores citados vivam e produzam as suas obras no contexto genérico destes mesmos cenários. A música (e as palavras da música) contrariam a vontade de circularidade das imagens — porque têm um tempo de representação que não é reversível. Mas acentuam, através da exploração de um clima sonoro muito denso, a decadência que as imagens sugerem. E, neste jogo de propositadas contradições, é ainda o texto de reflexão com que o autor acompanha a peça que nega o que parece ser o seu pessimismo geral. Valente Alves evoca nele a possibilidade de um futuro onde os valores humanos prevaleçam.

A obra de Manuel Valente Alves é pensada sobre a descoincidência dos lugares e das memórias ("Hotéis", 1992), entre as imagens e as palavras ("Cassandra", 1992), entre os conceitos e o real ("Princípios da perspectiva linear", 1994"), sobre a possibilidade de denunciar o inumano na história dos Homens ("Et in Arcádia ego", 1995,"Vitória de Samotrácia", 1996 ou "Donde vimos? O que somos? Para onde vamos?", 1996). Em "Hotel Europa" o trabalho de Valente Alves é de novo, como toda a ideia de viagem e registo de viagem, um trabalho de melancolia. O facto de se construir a partir de uma referência centro-europeia, que o modelo cultural romântico tão bem pode caracterizar, dá mais sentido a essa dimensão. Nesse sentido não é, como já vimos, um discurso desesperado. Há uma euforia que a vertigem da viagem (não propriamente a velocidade das imagens mas a sua ininterrupta sucessão) ajuda a consolidar em cada um de nós e que a sonoridade intensa da peça confirma. Em alguns momentos a relação som/imagem torna-se tão insuportável e opressiva (não tem nada a ver com o volume ou com a violência dos registos) que podemos ser obrigados a saltar abruptamente da cadeira. Saímos desta viagem e iniciamos uma outra — também nossa, a outros lugares onde o nosso coração colectivo enfraquece, onde o nosso corpo colectivo sangra, onde a nossa alma vagueia sem memória.

[PINHARANDA, João Lima, in catálogo de exposição “Sessão Contínua”, CAMJAP Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Setembro de 1998]