[Manuel Valente Alves, “Cassandra”, 1992]

NA MUDANÇA DE LUZ PARECE QUE SE MEXEM por João Lima Pinharanda

As subtis mudanças deste trabalho são mudanças radicais: perde-se a estabilização da linha do horizonte; cruza-se a especificidade da luz na fotografia com a tradição dos registos atmosféricos na pintura; a palavra integra a imagem não como legenda ou ilustração, mas como direcção interpretativa; a temática sugerida (o espaço e o tempo em que é inscrita) arrisca a capacidade de convocar, na obra de arte contemporânea, a dimensão do mito e do absoluto.

Dois meses depois de uma importante mostra no Centro de Arte Moderna (CAM), em Lisboa, Valente Alves apresenta imagens de base fotográfica que se podem considerar como feliz aprofundamento do anterior trabalho – radicalizando as suas opções conceptuais e visuais, o autor parece atin­gir o estatuto da maturidade, sem se deixar enredar nas armadilhas do esteticis­mo nem da discursividade.

O pretexto foi uma narrativa de Crista Wolf onde, a propósito da queda de Tróia e do estatuto social e psico­lógico da mulher, a análise dos elementos constitutivos da história de um corpo (e de uma alma) que caminha para a morte (que já lá está) é conduzida através da de­terminação de personagens chave e das suas relações com a protagonista. Valente Alves isolou, nessa constela­ção de personagens trágicos, os nomes de alguns homens:

Príamo, Aquiles, Eneias, Pá­ria, por exemplo. Não se tra­ta de ilustrar um livro, mas de questionar a ponderabilidade desses nomes do mito, de os recolocar no sistema de valores que, como refe­rente, funda a literatura ocidental.

As presentes obras podem ser comentadas segundo um ponto de vista especificamente fotográfico que, de modo artificial, as reduziria a uma repetição das experiências de Stieglitz, em 1923-31 ("Equivalentes"), desvirtuadas por um suplemento verbal espúrio; ou, enquadrando a lição do mes­tre americano, procurar o enriquecimento, possibilitado pela introdução de valo­res diversos dos especificamente visuais.

Tomemos como pontos de partida a ideia de paisagem, sobre a qual Valente Alves trabalhou para o CAM na sequência de experiências anteriores em que também se integra o tema da nature­za-morta. (Diferença, 1989) e as consequências compositivas dessas opções; as relações entre a tradição pictórica e fotográfica da representação da luz; as diferentes soluções de integração formal da palavra nas imagens; o sentido da palavra nas imagens ou o modo como se (cor)respon­dem, imagem e palavra, nas últimas exposições.

“Quando cada objecto começa a brilhar por si (...)”

A natureza-morta e a paisagem, sendo de estatuto diverso, acabam por fundir múltiplos valores: os da com­posição (desenvolvida a par­tir da escolha de um motivo e determinação da linha de sustentação dos objectos figurados) ou os temáticos (podendo funcionar aquela como lugar de síntese e análise desta). Escolhendo o céu (e não os seus habitantes) onde todos os referentes topológi­cos se perdem, substituídos por elementos indefinidos, constituídos por matérias em trânsito, reflectores quase aleatórios de puros fenóme­nos luminosos (as nuvens), Valente Alves radicalizou os condicionantes habituais do corte/enquadramento fotográfico (Philippe Dubois). A questão podia ser posta nos trabalhos desenvolvidos por muitos pintores (dos holandeses do séc. XVII aos impressionistas ou a Rucha) ­mas, mesmo as mais radicais "pochades" e óleos de Constable, por exemplo, funcio­nam num nível conceptual mais próximo do "estudo" e do exercício da mão do que no da pura (autónomo propó­sito de) reprodução da luz (que Stieglitz deseja alcançar e aqui se repete).

Substituindo a disposição horizontal das imagens pela vertical, Valente Alves reforça a negação da paisagem (que se desenvolve e é apercebida em olhares panorâmicos), introduz o próprio mo­mento/posição de visualização do céu, de cabeça erguida (como se nos encontrássemos no fundo de um poço, olhando o alto) e remete para a imagem tanto visual como literária da figura vertical humana.

Negando a sobreposição da palavra e da imagem (praticada na sua contribuição para "A Imagem das Palavras", op. colect, ed. Contexto/Europália, 1991), Valente Alves resolveu assumir, nos "Hotéis", a natureza distinta de ambos os tipos de inscrição. Agora, substituindo a le­genda (o nome do hotel era colocado sob a imagem) por um título (o nome do herói é colocado sobre a imagem), transforma a designação, o fornecimento de uma informação, por uma atitude de determinação prévia do conteúdo. A legenda toponímica, indeterminada no lugar (o nome de um hotel que se re­pete um pouco por todo o mundo civilizado é colocado frente a uma paisagem paradigmática) é substituída por um título onomástico, perfeitamente determinado em termos culturais, mas apesar de tudo indeterminado (ou extensível) no tempo da cultura ocidental.

Sabendo como o olhar funciona, na leitura de um texto, percebemos que somos levados a ler os nomes dos personagens, antes de vermos o céu que aleatoriamen­te lhes corresponde; aumentando o espaço entre a palavra inscrita e a foto colada, Valente Alves obriga à vertigem dessa "descida ao céu" e reforça a diversidade de estatuto dos dois elementos da imagem. A explicitação da diferença que já encontrávamos na realização manual (imperfeita) e posterior à impressão final das letras sobre o papel fotográfico é acentuada pela solução da "colagem”: a foto é colada sobre o suporte onde a palavra é es­crita.

Os céus indeterminam o lugar e a altura da observação: pode ser hoje, amanhã ou ter sido há 25 séculos; po­de ser aqui, nos antípodas ou no Egeu. A perda do horizonte e outros elementos de lo­calização determinam a perda de propriedade (identificação e intransmissibilidade da imagem), a indeterminação da imagem (a similaridade de todos os céus) leva à sua universalização: o individual (o irrepetível) é transformado, através do irrelevante (os céus nublados todos similares) não apenas em absoluto fotográfico (como diz Rosalind Krauss referindo- -se a Stieglitz), mas em absoluto cultural.

Trata-se de garantir, através das imagens (céus/nomes), o que pretende Christa Wolf: visibilidade para os que não vencem, para os fracos, para os que correm "ao lado do grande rio das canções heróicas" (p. 103). Porque, como refere Cassandra na narrativa que a leva "para a morte" (p. 7): "A coisa derradeira será uma imagem nunca uma palavra. Antes das imagens morrem as palavras." (p. 30)

Wolf, Christa - Cassandra, Ed. Cotovia, Lisboa, 1991. Trad. João Barrento

[PINHARANDA, João Lima, “Na mudança de luz parece que se mexem”, Jornal Público, 8 de Maio de 1992]