[Manuel Valente Alves, “A Morte de Virgílio”, 1999]

O TRANSITO DA VIDA E DA MORTE por João Lima Pinharanda

O trabalho de Valente Alves encontra-se em trânsito entre a palavra e a imagem. Constrói um novo tipo de discurso, onde a memória mais antiga do Ocidente se une à efemeridade voraz da contemporaneidade.

O novo trabalho de Manuel Valente Alves, na Galeria Diferença, insiste na articulação de duas vertentes essenciais: a recuperação (ou construção) da memória através da convocação simultânea dos registos da palavra e da imagem. Sendo impossível (ou artificial) o desejo de hierarquizar em cada trabalho a prevalência de um ou de outro elemento, é evidente a sustentação da imagem pelo peso interpretativo da palavra. Mais ainda quando no título, “A Morte de Virgílio”, se cita o título de uma obra literária e da instalação faz parte integrante um texto de reflexão crítica.

Para o visitante da sala, é uma instalação composta por elementos que vai percebendo em tempos diversos: um conjunto de três elementos visuais e um elemento escrito. Na parede frontal, pintada de vermelho, alinham-se três molduras iguais, à sua esquerda, num monitor, um pequeno cão ladra, esgravata o chão, roda sobre si mesmo num loop interminável, à direita, uma imagem enorme mas discreta reproduz em papel vegetal o alçado de um templo romano.

As três molduras têm conteúdos diversos: um espelho negro, um espelho e a fotografia de um céu cinzento (supostamente tirada na vertical do lugar) onde se inscreve a silhueta de uma ave (numa tomada de vista ventral). Depois deste percurso visual e auditivo (os insistentes latidos e o rumor incessante de uma auto-estrada) o visitante terá acesso a um texto. Em qualquer dos casos encontramo-nos perante tempos diversos de visão/leitura dos elementos: a sucessão de molduras coloca-nos perante a questão da reprodução da imagem e da luz, da história pintura e da fotografia, do retrato e da paisagem (temas que o próprio artista tem tratado exaustivamente), desencadeando percursos de aproximação e afastamento, (auto-)identificação e deslocação metafórica: o monitor conduz-nos para a terra (mudança que o texto nos confirmará) e, de novo, para um conjunto de desmultiplicações semânticas; o templo (romano, porque erguido sobre um soclo, e não grego) situa-nos num tempo específico (que coincide com o da civilização a que Virgílio pertenceu), embora também no tempo genérico do classicismo greco-latino ou no espírito de todos os classicismos – que é o da nostalgia do modelo ideal perdido e nunca alcançado.

Finalmente, o texto. O seu estatuto é reivindicado pelo artista sem ambiguidades como sendo “parte integrante da exposição”. No entanto a sua autoria é diversa, como também o é o seu tempo de integração na experiência física-intelectual da exposição dos elementos visuais desta. A redacção resulta de um diálogo estabelecido entre Maria Filomena Molder (autora) e Valente Alves mas tem mais visível um outro diálogo, o que estabelece com Hermann Broch, autor do romance “A Morte de Virgílio” de onde o artista parte para o seu trabalho. É esta intertextualidade que afina a “intervisualidade” inicial. Nela, pela interposta figura emblemática de Virgílio, se percebe o sentido profundo atribuível à morte. Broch refere-se à obra como um livro esotérico, “ocasião privada de salvação da própria alma”. E o que esta conjugação nos devolve é a consciência do fim da palavra viva e do olhar, da sua substituição pela inscrição (no livro, na pedra, na arquitectura) e pela memória.

[PINHARANDA, João Lima, “O Trânsito da Vida e da Morte”, Jornal Público, Lisboa, 17 de Março de 2000]