[Manuel Valente Alves, “Pinturas”, 1984]

PREFÁCIO por Fernando de Azevedo

Assinalando os dias, o diário pauta uma escrita absorvente, ora íngreme ora deslizante pelo leito do rio. Não será um diário como folhas e nada está escrito nele para vir só a ser depois, testamento descontente, afinal legível, e sobretudo ácido. As suas páginas estão separadas como são separados os dias e, como eles unidas, uma seguindo-se à outra, tal como os dias se seguem. Cada uma possui um tempo próprio, a sua cor e ainda mais: em vez dos massacres que há nos dias, e são tantos e tão penosos dia a dia, vêem-se nas folhas afloramentos ao que nos dias há, de mais parecido para fazer um diário que nos lembre só, exactamente, os dias. Não com uma nitidez excessiva, nada de holofotes intensamente coloridos cegando o que do sossego vive. A memória das coisas é minuciosa nuns, sabe-se, mas, sem deixar de ser memória esconde as coisas noutros; torna-as tão preciosas e dificeis de encontrar que acaba por ser, assim, a única memória que se faz nossa memória sentida e verdadeira, a única que vale a pena invocar sobre a realidade dos dias.

Nublosa, ela aceita, porém, o real como vestígio e aprende a cada instante a cadência visual e misteriosa que preserva do desgaste o nascimento das coisas. E porque muita evidência desgasta, como qualquer uso desgasta, quer-se do saber e do uso da vida tanto o saber e o seu uso como, ao mesmo tempo, a sua inocência ou a intocada pureza. Creio que esta conciliação é um trabalho próprio dos poetas, como o é também dos pintores, de certos pintores pelo menos. Eis porque Valente Alves entra neste discurso. Não entra nele apenas por ser pintor; entra relacionado, quanto a mim, por tudo o que, acima dito, me conduz da pintura à sua pintura.

Começa ele por ser, procurando-se entre o conhecer e o não conhecido, um desses particularíssimos pintores para quem o vestígio – mais do que a marca incisiva e denunciante – é sempre a realidade depurada por alguns dos seus mais significantes sinais. Sinais de passagem, vestígios da passagem. O uso da vida, porém, cabe nesta forma de inocência vinculada ao pudor que se oculta da imagem. O pintor sabe o peso das pequenas pedras ao levantá-las, leves e ociosas, e por isso oferece a uma pedra que adivinha a forma de uma outra que conhece. Contínuas transmutações de sinais operam sucessivas simulações nas paisagens: o muro espesso, de cal antiga e rosada, vestígio da árvore verde acastanhada, o circo submarino, azul, vermelho, ocre e cor de terra, feito de ligeiros traços negros e de recomeços de pista luminosos. Tal como os peixes evolucionam, evolucionam a nosso olhar, estes traços livres, segundo ritmos submersos tão antigos, tão lentamente do princípio que a sua existência parece ter-se iniciado agora, precisamente agora, como se tratasse de uma caligrafia originária, autónoma, já solta e ondulante no aspirar no espaço. Por vezes, uma quase letra de alfabeto tenta irromper, esquecida da palavra, subindo e descendo nesta descrição sem narrativa de um tempo incompleto da imagem.

As leis que governam o assentar dos sinais-vestígio em campo simuladamente lembrado das paisagens instauraram uma liberdade natural, como se lei não houvesse ou tão-pouco fosse dispensável. Se há, porventura, uma lei que organize, no espaço destes quadros, o desfile de tais sinais é aquele que também governa as regiões inexploradas, onde em todas as direcções os vestígios dos passos são perenes, quase imperceptíveis, e o sonho, a surpresa do não visto e a memória que a cada momento se insinua vão, pouco a pouco, criando um novo enredo. Nada disto é, porém, dito alto ou sequer afirmado. Um sussurro de confidência impele Valente Alves e a sua pintura para a orla intemporal da natureza, para próximo daquela serenidade sem desgosto que apenas se colhe na face, mais interior do seu convívio.

Digamos que esta pintura confiante (a despeito da sua subtileza parecer querer rodeá-la de vacilações) vem a ser simultaneamente o contacto e a imagem, isto é, emotividade percorrida e uma exteriorização que de algum modo se contém e se intimiza. Percebe-se que o pintor não pressione demais o terreno que desvenda e que disso retire a eficácia de uma caligrafia que, como que displicentemente, vai desenhando em finíssimas espessuras, delicados toques e demorada cor, uma linguagem cativante, ténue, como certas atmosferas fugidias mas encantatórias na sua fragilidade comunicativa. Espaço de deambulação ou de abordagem lírica é aquele, que nesta pintura se constrói; espaço vital, em que a própria deambulação persegue algum secreto, ainda que a luz penetre planícies, tanto quanto os subterrâneos, velhos muros verticais, céus, ou as estranhas horizontais em que o maravilhoso se afoita e tremula submerso.

Se há em Valente Alves um detido olhar sobre a natureza, tal olhar é envolvido por uma amorosa percepção das coisas. Que não estão visíveis ou que são outras coisas que não só as visíveis. Algo as lembra, alguém delas constantemente se lembra. Nem sempre, porém, é a certeza, o que melhor abraça a alma verdadeira, aquela que fundamente e só assim se descobre. O que mais se esconde tem um ponto no espaço, uma espécie de âmago genético em que, fraternalmente, começa a ser. É neste ponto do espaço que, de um modo surpreendente, esta pintura de que falo existe.


[AZEVEDO, Fernando de, “Prefácio” in catálogo da exposição ”Pinturas”, Clube Cinquenta, Lisboa, Abril de 1984]