[Manuel Valente Alves, “O espaço e a Interrogação”, 1986]

PREFÁCIO por Fernando de Azevedo

Muito a princípio o espaço da pintura de Valente Alves era um espaço de flutuação de sinais. Móvel como eles, tinha consigo, porém, a sedução das «atmosferas fugi­dias», como então chamei à relação visual delicada e ainda possível que mantinha com a natureza. Havia nessa pintura uma atenção, por um lado minuciosa, por outro como que desprendida ao que também então chamei de «vestígio do real» ou «vestígios da passagem». Não havia, nesses quadros, como que a definição de um lugar, de um onde, em que, por exemplo, cada sinal fosse ou estivesse exacta­mente dentro ou face à terra, ao céu, ou talvez submerso. Vê-se, assim, que a mobi­lidade era também característica desse espaço de pintura, que por ela se animava, escondia e mostrava aquilo que o compunha. O que veio a seguir, já iria ser um suporte mais estável. E também mais espesso; viria a tornar-se uma matéria mais densa, com uma arquitectura interna tentando organizar, como que orquestrar, elementos vários e dispersos, colorir o espaço dando intensidade a cada coisa, é certo, mas inscrevendo cada coisa — ou seu vestígio, ainda — no espaço da cor. Daí, ao espaço do muro, foi o tempo curtíssimo que o pintor gastou para isolar os sinais, escolhendo-os de entre a unidade e as dissemelhanças que tinha entre si, como pode fazer-se, a exemplo, com os dedos da mão. Essas telas, quanto a mim, já propunham, para além do ver, uma meditação de conotações simbolísticas, isto é, aos seus novos ou renovados sinais não era estranha uma dimensão antropológica de que o fascínio da máscara motivaria tanto a aproximação como a procura do pintor. E a matéria modificava-se também. A densidade já nela ensaiada originaria, entretanto, a par da solidez e rudeza expressionistas uma forte impressão de telurismo ritualizado.

Aparece-me, assim, a evolução brevíssima de Valente Alves, a que esta quase instalação, com os seus sete quadros presentes na Diferença, põe mais um importante marco ou degrau, conforme queiramos entender o evoluir de um pintor: se num percurso plano, se em ascensão. Em primeiro lugar ampliou-se não só a superfície, o lugar, como cresceu nesta pintura a imposição dos sinais. Imposição e clarificação quanto ao espaço, não quanto aos significados, propriamente. A ambiguidade é aqui, nestes quadros, significante em si mesma. Mais do que este ou aquele sentido atri­buível, é importante não a ausência de sentidos mas a confluência de significados. Eles estão, também, dependentes do decurso da pintura; será mais verdadeiro veri­ficar como a pintura recobre o que nela se ia dizer, o tumulto subterrâneo dos alu­viões de cor soterrados por camadas sucessivas de pesadas massas de cinzentos. Diríamos que o cinzento (os cinzentos, aliás, não são só um cinzento) é a cor do muro, para concluirmos que se ele é, sobretudo, uma não-cor, acaba por se tomar a cor da reflexão. Todo o pintor, a dado passo da obra, pinta em cinzentos. Outras poderão ser as cores de pintar a alegria, o melancolismo ou a agressividade. Os cin­zentos disciplinam, os cinzentos são a reflexão sobre a própria pintura. É com essa não-cor que os pintores formulam, geralmente, o intervalo de reflexão sobre a cor e o espaço. Quero dizer, por último, que é um espaço de interrogação, esse.

Este conjunto de telas de Valente Alves fica assim como que sujeito por uma certa angústia (direi bem?) interrogativa. Com, excepção de dois, os mais pequenos, todos os quadros são portões cerrados para um espaço a que deveriam, talvez, abrir-se. Ou haverá um espaço vivêncial impenetrável, que a memória propositadamente esquece, por detrás destas tão singelas, mas fortes e afirmativas arquitecturas? Já nos vamos esquecendo de que o arquétipo dórico é uma árvore: com duas colunas, um triângulo e alguns degraus desenha-se um templo. A imagem do espaço sagrado é afinal simples, parece e, no fundo, saberemos que será, sempre, um espaço de temor, de amor, um espaço de meditação e de reflexão. Também parecem ou são mesmo simples os sinais que Valente Alves emprega, também o seu espaço é, sem dúvida, um espaço de reflexão e a ela predispondo ou para ela criado. Daqui ao campo do sagrado, que é tanto dos Deuses como dos homens, a distância a percorrer é pequena e mede-se pela consciência do intransponível. Será pequena, porém não fácil de tomar em mãos. Estes quadros que semelham a matéria do aço, da ardósia, quase impenetráveis, que semelham, por vezes, o lenho velho, rijo e intratável, são intransponíveis. Talvez haja por lá grades de portões maravilhosos mas de jardins cerrados, e as matérias brilham conforme a luz que acertam sobre si. Haverá lembranças descritas, ainda que expressionisticamente (ou neocubistamente, algumas) conduzidas: um castelo, uma iluminação, talvez um pântano ou outras águas paradas, tão paradas que poderiam ser o seu contrário: a terra. Todavia, quasi todos estes quadros são, principalmente, um plano vertical posto entre nós e a vontade de o transpor. Em quasi todos há como que uma janela, uma porta, seja uma fresta, que deveriam ser de abrir e que não se abrem nunca. À extrema ductibilidade do espaço na anterior pintura, à sua mobilidade lírica e depois expres­siva, contrapõe ou acrescenta, agora, o pintor a monumentalidade estática dos seus sinais, a gravidade dos negros, a cobertura impenetrável dos mantos cinzentos em­bora cintilantes. Adivinha-se que houve noutro tempo, — esta pintura constrói-se no tempo — em instantes outros a tentação de perfurar pela cor essa gravidade gris que hoje se vê nela. Percebe-se, logo, porque não foi isso possível ou sequer perdu­rável: ninguém desafia o sagrado sem o temor, sem a angústia que esse desafio traz consigo.

[AZEVEDO, Fernando de, “Prefácio” in catálogo da exposição ”O Espaço e a Interrogação”, Galeria Diferença, Lisboa, Dezembro de 1986]