[Manuel Valente Alves, “Hotel Europa”, 1998]


QUEDAS E DECLÍNIOS por Celso Martins

São duas exposições, ambas exibi­das na colectiva «Observatório» que João Pinharanda comissariou em Ma­drid. Agora são apresentadas sob o títu­lo genérico «Sessão Contínua», numa alusão às antigas sessões de cinema ininterruptas que permite ainda ao es­pectador adivinhar a «matéria» essen­cial em torno do qual ambas se organi­zam: o tempo.

Impulsos e Hesitações (Diálo­gos), é uma instalação vídeo de Noé Sendas que conhece aqui a sua quarta apresentação. Nesta versão, a projec­ção faz-se incidir sobre uma aba, único elemento afirmativo num espaço arquitectónico caracteri­zado pela depura­ção. As imagens são de um filme de Vadim Abdrashitov e aparecem acompanhadas por uma sequência so­nora que inclui fragmentos retirados de filmes de Go­dard e John Huston. O que vemos é a queda de um corpo feminino, ininter­rupta, sem antes nem depois. Sem o momento da queda nem o seu estatela­mento. Um corpo a cair para sempre. O seu desamparo é fixado, paradoxal­mente, no interior do movimento que a montagem prolonga indefinidamente.

Nos seus dois últimos trabalhos, Sendas equacionava, o movimento sem saída de um vagabundo, que era a revelação quase cinematográfica e cir­cular de um transtorno demencial (How do You Think il Feels. Instituto Alemão) e o espaço encenado como vestígio global de uma acção passada (Monólogo. Projecto Tabaqueira). Em Impulsos e Hesitações o centro da questão é de novo o tempo e a forma como este se relaciona com as restantes coordena­das ( espaço, movimento) que rios aju­dam a receber uma dada imagem.

A convocação de uma condição trá­gica faz-se através de um exercício de descontextualização que, simultanea­mente torna abstracta e não localizá­vel uma circunstância e universaliza o desconforto da sua recepção. Pode­mos reconhecer a origem das imagens e dos sons, mas a vertigem da queda que nos é entregue agora possui uma eloquência que se autonomizou defini­tivamente do seu primeiro universo re­ferencial.

Hotel Europa é uma instalação ví­deo realizada a partir de imagens capta­das numa viagem de comboio entre Viena e Praga. Manuel Valente Alves trabalhou a velocidade das imagens, criando diferentes ritmos sob um pano de fundo de aceleração. Paisagens ru­rais e urbanas cruzam de modo descon­tínuo e acelerado o campo de visão. Os planos alternam entre aproximações e afastamentos, ora fixos, ora manuais, afastando-se o resultado de qualquer ideia de registo paisagístico documen­tal. À sequência visual, junta-se uma componente sonora criada a partir da música de compositores europeus de algum modo identificados com aquelas regiões do centro da Europa.

Desde logo, a música estabelece um pólo de interioridade, uma veloci­dade individual que recebe o visto co­mo uma veloz abstracção colorida. A relação entre imagem e som gera então algo que podíamos denominar como uma diferença de andamentos que, si­multaneamente, demarca um campo colectivo e outro individual, ao mesmo tempo que distingue a ideia de uma Europa histórica, credora de nostalgia, um presente de desequilíbrios onde estão há muito inscritos sintomas de decadência. V.A. faz transitar essa memória colectiva para um embate individual e solitário. Em última instância este é um exercício de reconhecimento e reinterpretação que toma a paisagem como ponto de partida para o encontro com uma realidade que não se pode assimilar pelo mero contacto visual. Enredada em impasses geo-estratégicos e tutelada pela superpotência que resta, a Europa é um lugar nostálgico de grandezas passadas. A embriaguez indiferenciada presente nas imagens parece fixar o estado de inconsciência colectiva que se apossa de impérios, regimes e civilizações no momento histórico exactamente anterior ao declínio. No filme La Haine de Mathie Kassovitz, uma anedota inicial estabelecia um programa para todo o filme, um homem caía de uma grande altura e enquanto caía repetia para si mesmo «até aqui tudo bem». Hotel Europa constata de modo subjectivo esse estado de suspensão melancólica da consciência colectiva. O desconhecimento de si-próprio instalado em cada um que permite dizer: «Até aqui tudo bem, até aqui tudo bem».

[MARTINS, Celso, “Quedas e declínios”, Jornal Expresso, Lisboa, 21 de Setembro de 1998]