[Manuel Valente Alves, Cassandra, 1992]

Agora faz-me jeito aquilo que toda a vida fiz: usar o pensamento para vencer os sentimentos Christa Wolf


RESPOSTA A CASSANDRA por Bernardo Pinto de Almeida


Eu vi estas imagens antes mesmo de as ter visto. Sabia, porque tinha ouvido dizer (questão: podese ouvir uma imagem?) que tinham sido construídas à maneira de uma meta-narrativa sobre uma narrativa — Cassandra, de Christa Wolf — construída ela mesma sobre uma primeira narrativa, arquetípica, a do mito antiquíssimo. No caso o de Cassandra, a mulher que é criação dos homens e que deles se pode rir, com raiva, como só o pode fazer do Criador, a criatura.

Eu vi estas imagens porque sabia que eram cinco, os cinco nomes desses homens que inventaram Cassandra, amando-a ou odiando-a, os cinco homens, guerreiros ou semi-deuses: o sábio Anquises; o formidável Eneias que, bom filho, o carregou às costas para longe do.incêndio e que foi filho de Afrodite, o eterno amado de Cassandra; o astuto Príamo, pai de Cassandra; o bravo e louco Páris, irmão de Cassandra que por amor de Helena lançou Tróia na desastrosa guerra, e seu irmão Heitor, que Aquiles matou. Que eram cinco os homens que inventaram Cassandra, a que não teve mãe, ou que a tendo tido a esqueceu, por amor ou ódio pelos homens, tal como a fotografia, a filha da imagem, teve que esquecer a figura maternal da pintura para poder existir.

Vi estas imagens porque sabia que eram cinco os nomes e cinco os céus (questão: haverá um céu para cada homem? e para as mulheres?), não os céus incendiados que os de Tróia viram quando do grande incêndio, mas os carregados céus que prenunciam os grandes desastres, que os oráculos olharam com os olhos esvaziados, onde viram reflectir-se a iminente fatalidade. Vi-as então de cada vez que olhava para o céu, mais nítidas do que se para elas olhasse, porque sabia que cinco eram os céus, e cinco os homens e cinco os sentimentos de Cassandra para cada um, cinco os desejos, cinco as imagens.

Vi-as como se lembra um sonho, no estado hiperagógico de o não saber distinguir do que se imaginou e do que é real(questão: o que se imagina é ou não é real?), como num sonho se lembram outras coisas que antes foram tangíveis, não como o céu, mas como o fogo, a terra, a água, os corpos, as mãos, o mar.

Vi-as como vi Tróia antes da guerra, como quem viu a Grécia e o Santuário de Apoio antes de lá ter ido ver com os seus olhos verdadeiros, porque uma Grécia habita o coração de cada homem como uma ilha a que um dia se regressa.

E vi Cassandra deambulando enlouquecida entre os escombros, olhando os céus incendiados, sem saber já o que a movia, se o ódio, se o amor, se a fidelidade a Tróia ou à beleza, se tudo aquilo, aqueles escombros fumegando ainda das ferozes batalhas, valeriam a beleza de Helena, se a beleza é razão par originar a destruição. Cassandra vagueando por entre as ruínas e perguntando, num monólogo trágico, que incêndios nos corações dos homens justificam tanta destruição e tanta fúria e tanto ódio que aquilo que antes foram cidades, campos, prados, se possam converter em cinzas, escombros, terra queimada, sangue, (questão: que incêndios nos corações dos homens podem justificar a destruição?) Eu vi Cassandra junto de mim segurando-me a cabeça, antes de partir, eu guerreiro morto agora, que me submeti à lei de Tróia e dos seus chefes, eu vi-a segurar-me a cabeça e gritar, eu vi nos seus olhos o reflexo do incêndio e compreendi a insensatez dos homens, a insensatez dos seus amores e dos seus ódios, das suas funestas paixões, tudo isto eu vi enquanto Cassandra me soerguia a cabeça e o meu corpo sangrava sobre a terra, quente da batalha, da minha Pátria, e vi Cassandra rir-se de mim e das paixões dos homens enquanto dos olhos e pelo rosto lhe corriam lágrimas (questão: podem as lágrimas de uma mulher chorar as desgraças que os homens cometeram?) e essas lágrimas quentes como se fossem lava ou terra incendiada me caíam sobre o rosto e me queimavam.

Eu olhei então os céus de Tróia, para além dos homens que haviam lançado a guerra e esperei que esses céus me acolhessem numa recôndita paz, vi esses céus e fiquei a olhá-los mesmo depois de Cassandra me voltar a pousar a cabeça ardendo de febre, mesmo antes de fechar os olhos para sempre (questão: porque são sempre os vencedores que ficam para contar?), quedando-me apenas com a imagem dos céus na minha memória, e antes que o sonho me invadisse e para sempre ficasse adormecido, com o corpo já bem longe daquelas terrenas empresas, daquele incêndio, daquelas imagens, daqueles homens, daquelas paixões funestas que conduziram, em nome da bela Helena, os homens ao desastre, ao fim, como eu, pobre guerreiro, que apenas cumpri um destino que me foi cometido pelas paixões dos homens, pelos incêndios que devastam os corações dos homens.


[PINTO DE ALMEIDA, Bernardo, “Resposta a Cassandra” in catálogo de exposição Cassandra, Lisboa, Instituto Alemão, Maio de 1992, português/alemão]